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Esporte

Copa do Mundo num país esterilizado

Yuri Resheto de Moscou
14 de junho de 2018

Casca em vez de alma, decreto em vez de entusiasmo: a Rússia se livrou de sujeira, bêbados e oposicionistas, está limpa e organizada. Um reflexo da faxina gradual do espaço público que já há anos avança no país de Putin.

Logo da Copa do Mundo, com Catedral de São Basílio, Moscou, ao fundo
Foto: picture-alliance/AP Photo/P. Kolovkin

Os funcionários do Centro de Higiene e do Departamento de Epidemiologia da administração regional de Ecaterimburgo comunicam que os lagos municipais foram tratados efetivamente contra larvas de mosquitos. Nenhum inseto russo vai picar naquela cidade os espectadores da Copa do Mundo vindos do Egito ou do Uruguai.

O Departamento de Segurança Regional e Combate à Corrupção em Moscou comunica que a venda de álcool será restrita num raio de dois quilômetros em volta dos estádios. Os torcedores da Alemanha ou Argentina deverão ser poupados do desagradável clichê do russo notoriamente bêbado.

E não só deste, mas também dos mendigos, dos trabalhadores migrantes do Tadjiquistão e dos jovens de tendência oposicionista. Para tal cuidarão decretos extraordinários, por exemplo, a proibição de reunião e de manifestação ou as normas de imigração mais severas.

Nada de lixo nas esquinas, grafite nos muros ou janelas rachadas. Em vez disso, vias recém-asfaltadas, fachadas saneadas, árvores crescidas da noite para o dia. Tudo chique e bonito.

Comparado com Nova York, Berlim ou Paris, os espectadores estrangeiros do Mundial de fato se espantarão com a limpeza das metrópoles russas. Mais ainda: com as calçadas extralargas, ciclovias recém-demarcadas e táxis relativamente em conta, para convencê-los de quão segura, adiantada e cosmopolita é a moderna Rússia. Afinal, ninguém nunca se queixou de excesso de limpeza. E todo o mundo também preza a segurança. Então, tudo vai às maravilhas na Rússia.

Só é pena que os turistas da Copa em geral vão ter que ficar entre si nas calçadas extralargas, pois muitos moscovitas alugaram para os estrangeiros os seus apartamentos no centro e se retiram para suas dachas na periferia. Pena que raramente se escutará uma campainha de bicicleta, pois dá para contar nos dedos de uma mão o total das ciclovias de Moscou.

Pena que quase não vá se ver em São Petersburgo ou Ecaterimburgo vida noturna de verdade, como se conhece de Berlim ou Madri. Churrasco no parque? Deus me livre! Namorar no banco? Só se for heterossexual.

Por ocasião do Mundial, são muito especiais as relações oficiais entre o Estado russo e os torcedores estrangeiros que querem visitar esse Estado. Pelo menos nas 11 cidades-sedes: desde 25 de maio vigora a ordem extraordinária do Ministério do Interior obrigando todos os visitantes estrangeiros a se registrarem na polícia ou no Departamento de Imigração dentro de três dias, pessoalmente. E os recém-chegados que se deem por felizes de ter prazo tão generoso: originalmente era para ser um dia só.

Para os espectadores estrangeiros da Copa sem disposição de se ocupar de assuntos negativos como a anexação da Crimeia, a guerra no leste da Ucrânia, ou o envenenamento de Sergei e Yulia Skripal, será fácil evitá-los. Mas quem quiser conhecer uma outra Rússia, vai se deparar com um país bonito demais, limpo demais, quase estéril até.

Casca em vez de alma, decreto em vez de entusiasmo: um reflexo da faxina gradual do espaço público que já há anos avança na Federação Russa. Um espaço público que lembra cada vez mais a naufragada União Soviética. Fundar uma empresa? Teoricamente factível, mas na prática quase impossível – excesso de burocracia. Liberdade de expressão? Garantida na Constituição, na realidade, punida. Crítica? Cortada pela raiz.

Só resta a esperança de que cidadão normal Ivan Russo convide o John Inglês ou o Otto Alemão a visitá-lo em casa, para sua acolhedora cozinha, onde mesmo nos tempos soviéticos se falava livremente, e onde o quadro na parede pode estar um pouquinho torto.

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