1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Análise: Crônica de um ataque anunciado à democracia

9 de janeiro de 2023

A invasão das sedes dos três Poderes por bolsonaristas e a conivência das forças de segurança já eram esperadas. Por mais trágicos que sejam, os atos golpistas em Brasília podem acabar beneficiando Lula.

Invasão do Palácio do Planalto
"Imagens chocantes de Brasília dificilmente foram capazes de surpreender alguém", escreve Thomas MilzFoto: picture alliance / ASSOCIATED PRESS

Envoltos em bandeiras do Brasil, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadem e depredam o Congresso, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF) em Brasília – são imagens chocantes as transmitidas por meio de celulares e da TV para o mundo todo a partir de Brasília neste domingo (08/01). Mas dificilmente foram capazes de surpreender alguém: estava claro que, mais cedo ou mais tarde, esse ataque aconteceria.

Pois não faltaram alertas, sobretudo vindos do próprio Bolsonaro. Um dia após a invasão do Capitólio em Washington, em 6 de janeiro de 2021, o então presidente afirmou que tais cenas poderiam se repetir no Brasil se fossem levantadas dúvidas em relação ao resultado das eleições de 2022. Com fake news espalhadas por ele mesmo sobre urnas supostamente manipuladas, Bolsonaro então semeou tais dúvidas entre seus apoiadores mais radicais.

Além disso, desde seu "momento de despertar" político – o impeachment da presidente Dilma Rousseff em abril de 2016 –, Bolsonaro copiou praticamente tudo o que seu ídolo declarado Donald Trump fez nos Estados Unidos. Isso incluiu não reconhecer a derrota eleitoral – no caso de Bolsonaro, contra Luiz Inácio Lula da Silva.

Bolsonaro também aprendeu com Trump a manter suas próprias declarações vagas de modo que seus apoiadores radicais as interpretassem como um apelo à subversão, mas que ele mesmo sempre pudesse afirmar que nunca pregou nada do tipo. Na noite de domingo, de seu refúgio na Flórida, ele condenou a invasão de prédios públicos, mas afirmou que "a esquerda" supostamente já havia feito algo semelhante em 2013 e 2017.

É claro que a esquerda não fez algo semelhante, mas isso parece não importar. Bolsonaristas alimentados por vídeos do TikTok não parecem interessados ​​no fato de que notícias falsas lhes foram mais uma vez empurradas goela abaixo. A racionalidade e a realidade já foi abandonada por eles há muito tempo.

O papel das forças de segurança

Vídeos dos atos criminosos também deixam claro que as forças de segurança de Brasília tiveram pouco interesse em enfrentar os manifestantes. Em vez de expulsá-los da Praça dos Três Poderes, eles parecem ter acompanhado os apoiadores de Bolsonaro. Policiais foram vistos filmando os ataques de vandalismo e conversando com invasores.

Mas isso também dificilmente surpreendeu alguém. Porque grande parte das forças de segurança – tanto das Forças Armadas quanto das diversas polícias – apoia abertamente Bolsonaro. Esses apoiadores estão conectados às redes bolsonaristas por meio de grupos de WhatsApp, são "os serviços privados de inteligência" aos quais o ex-presidente vivia se referindo. O poder das polícias ficou evidente já em fevereiro de 2020 no Ceará, quando houve um motim de parte da Polícia Militar, subordinada ao governador.

A isso se somaram ligações de Bolsonaro com a Força Nacional, cujo comandante, Antônio Aginaldo de Oliveira, é marido da deputada bolsonarista Carla Zambelli. Oliveira elogiou abertamente o motim policial no Ceará. O poder de Bolsonaro sobre os militares, mas principalmente sobre os policiais, provavelmente contribuiu para que nenhum processo de impeachment fosse impetrado contra o ex-capitão durante seu mandato como presidente.

Anderson Torres como bode expiatório

Problemas com o Judiciário agora ameaçam Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro que vinha atuando como secretário de Segurança Pública do Distrito Federal e foi exonerado neste domingo. O aliado de Bolsonaro havia tirado férias e, assim como o ex-presidente, está na Flórida. Um mandado de prisão internacional deve agora ser emitido contra ele.

Seu superior, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, também não se saiu bem. Primeiro Lula removeu seus poderes e determinou que um interventor ficasse responsável pelo aparato de segurança em Brasília até o final de janeiro. Por volta da meia-noite, o ministro do STF Alexandre de Moraes determinou o afastamento do governador por 90 dias. Não ajudou o fato de Ibaneis ter pedido desculpas a Lula por meio de um vídeo.

Dúvidas sobre a lealdade do governador ao presidente Lula já haviam sido levantadas nas últimas semanas. Ele não parecia particularmente interessado num processo penal contra os envolvidos em tumultos em meados de dezembro e numa suposta tentativa de atentado descoberta no mesmo mês. Ibaneis é considerado pró-Bolsonaro, assim como os governadores dos três estados mais importantes do país: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Lula se beneficiará da barbárie

Pode parecer estranho, mas o presidente Lula se beneficiará dos tumultos. Mesmo seus maiores críticos no Congresso e nos governos estaduais estão se apressando para condenar a violência.

Além disso, o Supremo Tribunal Federal agora tomará medidas cabais contra o núcleo radical de Bolsonaro. Até o momento, isso vinha sendo feito com o freio de mão puxado, para evitar acusações de perseguição contra bolsonaristas por motivos políticos. Agora eles poderão ser abertamente tratados como golpistas.

E os militares, que até agora se inclinavam a favor de Bolsonaro mas se mantinham calados, terão que se posicionar. Lula está agora mais firme no poder do que antes, porque os militares não vão participar de um verdadeiro golpe contra o presidente.

Resta saber até que ponto o próprio Bolsonaro está envolvido no ataque e quais consequências os atos de violência terão para ele. Ele negará qualquer envolvimento na invasão e fará condenações amenas à violência – uma primeira amostra disso já seu viu na noite de domingo.

Os incidentes em Brasília enterram as chances de Bolsonaro se firmar como líder da oposição – algo que ele muito provavelmente não pretendia fazer de qualquer maneira. Porque ele não tem clareza para planejar nem perseverança para se estabelecer no longo prazo como adversário de Lula e candidato em 2026. Provavelmente convém a Bolsonaro ter queimado todas as suas chances agora: isso lhe permite esconder sua falta de vontade e capacidade de moldar a política. Assim como sempre fez ao criar polêmicas durante seus quatro anos na Presidência.

--

Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

Pular a seção Mais sobre este assunto