1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Análise: na ONU, Lula busca protagonismo no Sul Global

Fábio Corrêa
20 de setembro de 2023

Presidente citou ineficiência dos organismos multilaterais na resolução de crises. Para especialistas, discurso mostra vontade em recolocar a diplomacia brasileira no papel de interlocutor dos países em desenvolvimento.

New York | UN Generalversammlung der Vereinten Nationen | Luiz Inacio Lula da Silva
Foto: ED JONES/AFP/Getty Images

Catorze anos depois, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva retornou aos palcos das Nações Unidas (ONU) para discursar na 78ª Assembleia Geral da organização. Na esteira do mote "o Brasil está de volta”, frase que proferiu durante o discurso desta terça-feira (19/09) em Nova York, que durou pouco mais de 20 minutos, o chefe do Executivo seguiu uma linha em que colocou a desigualdade, em âmbito interno e global, como o grande desafio a ser perseguido pela comunidade internacional.

Ao abordar temas como o clima, fome, imigração, guerra e ascensão da extrema direita, Lula fez claras menções às diferenças que separam as nações pobres e em desenvolvimento das grandes potências ocidentais. "Estabilidade e segurança não serão alcançadas onde há exclusão social e desigualdade”, afirmou o presidente brasileiro, após mencionar que as despesas com armamento nuclear em todo o mundo chegaram a US$ 83 bilhões, o que, segundo ele, corresponde a 20 vezes o orçamento da própria ONU.

Para especialistas em política internacional ouvidos pela DW Brasil, o discurso de Lula em Nova York retoma a postura multilateral e universalista do Brasil, que busca recuperar uma posição estratégica de interlocutor de nações do chamado Sul Global junto ao centro do poder internacional.

"Lula operou numa chave Norte-Sul, com muita evidência. Muito à vontade para tratar das relações exteriores a partir desse enfoque. Talvez a melhor lente para enxergar isso é a lente da desigualdade, e ele trouxe esse tema para o primeiro plano”, diz Dawisson Belém Lopes, professor de relações internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Segundo o professor da UFMG, a fala de Lula em 2023 é mais premente e pode ser mais compreendida no contexto atual do que nos primeiros dois mandatos, devido ao tensionamento que desemboca em crises com a da Guerra na Ucrânia. Por sinal, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, foi um dos presentes no discurso do análogo brasileiro. O líder do país do Leste Europeu, no entanto, não seguiu os aplausos do público nas vezes em que o petista foi aclamado pela plateia nesta terça-feira.

"Aquele tipo de audiência é menos sensível, na média, a apelos como a provisão de armas para a Ucrânia ou imposição de embargos à Rússia”, analisa Lopes, que cita que dois terços do mundo não impõem sanções ao país comandado por Vladimir Putin.

"Lula sabia disso e manteve um tom de distanciamento em relação à guerra russo-ucraniana. Ele não menciona a Rússia, menciona a guerra na Ucrânia, mas no bojo de outras dez, quinze situações dramáticas de segurança internacional. Não acho que o Zelenski tenha ficado particularmente feliz com o discurso de Lula. Lula foi distante. Ele não se compromete com a questão ucraniana de maneira central”, acrescenta. Nesta quarta-feira (20/09), Lula e Zelenski devem enfim ter uma reunião bilateral, a primeira entre os dois chefes de Estado.

Lula e Joe Biden. Ao exigir a libertação de Julian Assange e o fim do embargo a Cuba, Lula tocou em pontos que são tabus da política externa dos EUAFoto: Sarah Silbiger/REUTERS

Reforma dos organismos internacionais

No discurso, o presidente brasileiro também contestou a composição e atuação de organismos internacionais. Além da própria ONU e de seu Conselho de Segurança, Lula cobrou o compromisso firmado no Acordo de Paris, de 2015, que previu um repasse de US$ 100 bilhões aos países mais pobres para o enfrentamento das mudanças climáticas – valor que chamou de "insuficiente”.

Além disso, ao citar a disparidade das verbas disponibilizadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) aos países europeus (US$ 160 bilhões) em relação aos países africanos (US$ 34 bilhões), Lula chamou a atuação do Fundo e do Banco Mundial de "desigual e distorcida”. "O Brics surgiu na esteira dessa imobilismo”, arrematou o presidente, na sequência.

De acordo com Roberto Goulart Menezes, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Núcleo de Estudos Latino Americanos da instituição, o cerne das falas de Lula na Assembleia da ONU tratou foi a desigualdade – tanto dentro dos países como entre eles.

"[Essas críticas] mostram que as instituições internacionais estão a serviço das grandes potências, que não têm nenhum interesse em reformá-las, porque elas servem a seus interesses”, afirma Menezes. Para ele, o petista criticou, mesmo que de forma indireta, a Rússia ao falar sobre a crise de credibilidade do Conselho de Segurança da ONU.

"O Lula condena que os membros do Conselho de Segurança com poder de veto, a Rússia incluída, continuem fazendo guerra para expandir território. Ele diz que os países em conjunto da ONU não estão compromissados com a paz, critica fortemente o armamentismo, mas afirma a posição do Brasil: que o diálogo deve prevalecer, que a diplomacia deve estar em primeiro plano e que o espaço central para isso é a ONU”, analisa o professor da UnB.

Para Menezes, é difícil que o discurso de Lula tenha agradado Zelenski. "A posição não agrada ao Zelenski, porque os Estados Unidos e a União Europeia têm tentado atrair os países do Sul Global à sua posição. Mas reafirma o universalismo da política externa brasileira ao dizer que o país vai tentar manter o diálogo de alto nível com todos”.

Na visão de Paulo Niccolli Ramirez, cientista político da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), a ideia propagada por Lula é que a solução para a crise na Ucrânia aconteça através de nações que não tenham interesses diretos em relação à guerra, como é o caso de Brasil, Índia ou África do Sul.

"É claro que a ‘paz' que o discurso do Lula buscou encaminhar não vai ser alcançada por russos e americanos, mas por países que façam a política de bons vizinhos e reúnam as partes antagônicas. Por isso o interesse dele em acabar com o conflito, pois mostraria a necessidade de reforma do Conselho de Segurança, que tem o papel de manter a paz, mas não conseguiu isso nesse um ano e meio do conflito”, diz Ramirez.

Lula e o líder do regime cubano Miguel Diaz-Canel. Brasileiro defendeu fim do embargo americano à ilhaFoto: ADALBERTO ROQUE/AFP

Julian Assange e embargos a Cuba

Ao exigir a libertação do ativista australiano Julian Assange e o fim do embargo a Cuba, Lula tocou em dois pontos que, segundo Dawisson Belém Lopes, são "tabus da política externa dos Estados Unidos".  "Ele colocou o dedo em algumas feridas. Essa frontalidade [no discurso] é um elemento muito importante”, afirma o professor da UFMG. Nas duas citações, o presidente brasileiro foi aplaudido pela plateia na ONU.

Sobre Cuba, Paulo Niccolli, da ESPM, considera o embargo americano à ilha como algo "sem o menor sentido”. "Claro que ainda é uma ditadura, mas Cuba é incapaz de ameaçar qualquer interesse econômico, político ou militar dos EUA. Há uma comoção internacional sobre isso, e o Lula se transformou num porta-voz desse discurso contra o embargo, que custa muito a Cuba”, diz. "Como apoiador e simpatizante do regime, Lula será ouvido, colocando em crise ainda essa manutenção do embargo que só interessa à ala mais conservadora nos Estados Unidos”, complementa Nicolli.

Em relação à questão do jornalista australiano, que está detido no Reino Unido por ter divulgado documentos confidenciais do governo norte-americano, o cientista político lembra que o chefe do Executivo fez ecos ao pedido de entidades para que Assange tenha asilo político no Brasil. "O que o Assange fez foi garantir um direito que deveria ser constitucional nos Estados Unidos, que é a liberdade de expressão, trazendo à tona documentos públicos que mostravam políticas ‘debaixo dos tapetes' em relação à política interna e externa daquele país, inclusive apoiando regimes nem sempre diplomáticos”, lembra.

De acordo com Roberto Goulart Menezes, Lula fala diretamente aos Estados Unidos e ao Reino Unido ao citar o jornalista australiano. "Ao individualizar essa questão da imprensa, demonstrou autonomia”, conclui o professor da UnB.

 

Pular a seção Manchete

Manchete

Pular a seção Outros temas em destaque