Análise: Pelo menos o Brasil voltou a debater seu passado
1 de abril de 2019
A estranha ordem de celebração do golpe militar pelo presidente Jair Bolsonaro levou, ao menos, a que se voltasse a falar sobre os obscuros tempos da ditadura no Brasil. Um resgate crítico que ainda não foi feito.
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O presidente Jair Bolsonaro gosta de falar sobre a ditadura militar. Foi a época de sua juventude. Aos 15 anos, sete anos após o golpe de 1964, ele participou, pessoalmente, da caçada a opositores em fuga, guiando os militares na captura de Carlos Lamarca, ex-oficial e comunista, pelas florestas locais.
Na segunda-feira passada (25/03), no entanto, ele enviou o seu porta-voz: este declarou que os militares deveriam celebrar solenemente o dia 31 de março. Para muitos fardados, inclusive Bolsonaro, as Forças Armadas salvaram o Brasil de uma ditadura comunista naquele dia de 1964.
Não se sabem quantos brasileiros pensam da mesma forma que deste presidente eternamente saudosista. Na mídia, no entanto, a ordem de celebração por parte de Bolsonaro foi acompanhada por uma tempestade de indignação.
Por vários dias, os meios de comunicação lembraram as atrocidades praticadas pelos agentes de repressão. Pois é quase indiscutível, principalmente entre os intelectuais brasileiros, que a Constituição foi violada em 31 de março de 1964 com a deposição do presidente democraticamente eleito João Goulart.
Será que Bolsonaro não esperava reações tão barulhentas? De qualquer forma, na quinta-feira ele retrocedeu, afirmando que não havia ordenado nenhuma comemoração, mas apenas atividades para rememorar o golpe militar.
Na sexta-feira, uma juíza proibiu as cerimônias em que um texto devia ser lido no quartel e que escondia as atrocidades da ditadura, mas celebrava os militares como salvadores da nação.
Na manhã de sábado, uma desembargadora anulou a proibição. As cerimônias foram permitidas. Surpreendentemente, no domingo, quase nenhuma foto de quartel foi divulgada. Em vez disso, algumas manifestações contra a ditadura dominaram a paisagem midiática. Em São Paulo, cerca de 8 mil manifestantes, vestidos de preto em sua maioria, saíram às ruas; em Belo Horizonte, 5 mil; e no Rio de Janeiro, 2 mil.
"Ditadura nunca mais", lia-se em suas faixas. As contramanifestações, com cidadãos atravessando as ruas com a bandeira verde-amarela e cantando o Hino Nacional, foram pouco prestigiadas. Nas mídias sociais, ambos os lados se entregaram a orgias verbais, como eram comuns na campanha eleitoral do ano passado. O Brasil continua profundamente dividido.
"Esse episódio só revela as consequências da falta de uma política pública de enfrentamento do legado do regime autoritário", diz Marlon Weichert, procurador do MPF especializado em processos da ditadura.
Ele afirma considerar a celebração inconstitucional porque minimiza violações dos direitos humanos. "Só o fato de fazer uma memória que não seja necessariamente uma crítica à ruptura da ordem constitucional já pode ser apenas um eufemismo."
Até agora, devido à lei de anistia aprovada em 1979, não foi possível uma punição dos perpetradores. Nem os militares que torturaram e assassinaram figuras da oposição nem os guerrilheiros que mataram soldados sofreram punição.
"Um país que não fez seus deveres de casa em termos de justiça, seguimos sem promover justiça, sem reparar as vitimas do ponto de vista simbólico, sem fazer uma autocrítica. O Estado brasileiro não se reformou, não fez a autocrítica, e isso não só as forças militares, mas o Estado como um todo", afirma Weichert.
O ex-guerrilheiro Maurice Politi diz ter se surpreendido como o fato de Bolsonaro ter ordenado a cerimônia logo no início de seu mandato. Politi, que foi preso durante quatro anos e sofreu torturas na década de 1970, também afirma ver um efeito positivo na controversa ordem de Bolsonaro.
"No ato do Doi-Codi em São Paulo, em geral nós tivemos todos os anos 300 pessoas. Agora tivemos o dobro de pessoas." Nas instalações, os militares torturaram e mataram opositores. Hoje, o local é um memorial com uma alta taxa de jovens visitantes, conta Politi.
O Brasil está atrasado quanto ao resgate crítico de seu passado. Na Argentina, por exemplo, os generais foram condenados há muito tempo."Nenhum país da América Latina comemora com festa o dia do golpe militar. Só o Brasil que está nessa", aponta Politi. A razão é o longo silêncio após o fim da ditadura em 1985. Somente em 2007, a discussão sobre a validade da Lei da Anistia acabou com esse silêncio.
"Por mais de 20 anos, esse tema ficou debaixo do tapete, é toda uma geração que cresceu sem saber o que exatamente aconteceu nesse período." De 2012 a 2014, a Comissão da Verdade criada pela presidente Dilma Rousseff reuniu dados sobre a ditadura. Contou 434 assassinados e milhares de torturados, inclusive a própria Dilma.
No entanto, as recomendações da Comissão, que incluem uma revisão do currículo escolar e o estabelecimento de uma "Justiça de transição" com penas pelo menos simbólicas, nunca foram implementadas, diz Weichert."É indispensável que o Brasil o faça – se não, seguiremos tendo episódios como esse."
O próprio Bolsonaro não compareceu às cerimônias. Ele está de visita a Israel. Um de seus filhos, Eduardo, postou um vídeo no Twitter na noite de domingo, no qual um narrador idoso relata o medo de uma tomada de poder pelos comunistas em 1964. "Os militares nos salvaram", afirma a mensagem do vídeo, que foi publicada um pouco depois nos canais oficiais de imprensa do Palácio do Planalto.
Indagado sobre quem estava por trás da publicação, o governo recusou-se a fazer qualquer comentário. Muitas coisas permanecem obscuras.
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As visitas de presidentes brasileiros aos Estados Unidos
Relembre como foram as principais visitas de presidentes do Brasil aos Estados Unidos após a redemocratização do Brasil nos anos 1980.
Foto: Public Domain/Ronald Reagan Presidential Library & Museum/White House
Setembro de 1986: Sarney visita Reagan
Além de se reunir com Ronald Reagan, José Sarney proferiu um discurso ao Congresso. Os líderes discutiram a crise do endividamento internacional e a recusa do Brasil em assinar um acordo formal com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Outro tema foi a manutenção pelo Brasil da reserva de mercado para produtos de informática, mesmo com possíveis sanções pelos EUA. Pelé também estava na comitiva.
Foto: Public Domain/Ronald Reagan Presidential Library & Museum/White House
1990-1992: visitas entre Collor e Bush
Os dois presidentes se encontraram duas vezes em 1990: em setembro, Fernando Collor esteve com George H. W. Bush durante a Assembleia Geral da ONU e, em dezembro, o americano visitou Collor e ainda discursou ao Congresso brasileiro. Em junho de 1991, o brasileiro visitou Bush nos EUA e, em junho de 1992, Bush teve um encontro com o brasileiro durante a Conferência Rio-92.
Abril de 1995: FHC visita Clinton
Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton abordaram um dos principais atritos entre os países: a aprovação da Lei de Patentes. Os EUA ameaçavam com sanções se o projeto não passasse. O texto chegou a ser aprovado em fevereiro de 1996, mas nos moldes como queriam os americanos. FHC repetiu ainda uma demanda brasileira existente até hoje: ser membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.
FHC participou de uma reunião nas Nações Unidas sobre o combate ao tráfico de drogas e ficou hospedado em Camp David, a casa de campo da Presidência americana. Ele teve um encontro informal com Clinton, que cumprimentou FHC pela boa resposta brasileira à turbulência financeira asiática. Os dois líderes conversaram ainda sobre a paz no Oriente Médio e a estratégia de combate às drogas.
Foto: Imago/Zumapress/S. Farmer
Maio de 1999: FHC visita Clinton
Em Washington, FHC participou de vários encontros com governantes e empresários para convencê-los de que o pior da crise econômica já havia passado e afirmou que seu governo tentaria impedir outras no futuro. Com Clinton, FHC insistiu que era necessário buscar mecanismos financeiros que protegessem o país de ataques especulativos e de prejuízos provocados pela volatilidade de capitais.
Foto: picture-alliance/AP Photo/S. Walsh
Abril de 2001: FHC visita Bush
Na visita, o país desistiu de selar um acordo com os EUA sobre o início da Área de Livre Comércio das Américas (Alca. O revés de última hora ocorreu após o Departamento de Estado enviar a alguns países um memorando defendendo o ano de 2003 – em contraponto ao acordo fechado entre Brasília e Washington de começar a Alca em 2005. O documento esvaziou a visita de FHC.
Foto: Getty Images/M. Wilson
Novembro de 2001: FHC visita Bush
FHC e George W. Bush tiveram na Casa Branca uma conversa amigável, porém, morna. Ambos falaram sobre terrorismo, prejuízo do protecionismo às nações em desenvolvimento, economia da Argentina e a criação de um Estado palestino. FHC reforçou ainda o desejo do Brasil de ter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Depois, o brasileiro foi para Nova York abrir a Assembleia Geral da ONU.
Foto: Getty Images/AFP/S. Thew
Junho de 2003: Lula visita Bush
O encontro terminou sem resultados concretos. O Brasil chegou a prometer que cooperaria para concluir com êxito a Alca até 2005 e a pedir o apoio de Washington para ter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU – dois assuntos que não avançaram. Eles também discutiram a paz no mundo e Lula disse que ela só seria alcançada se os países ricos ajudassem os mais pobres a se desenvolverem.
Foto: picture-alliance/dpa/S. Thew
Março de 2007: visitas entre Lula e Bush
No início do mês, Bush e Lula assinaram em Guarulhos/SP um memorando para a cooperação no desenvolvimento da tecnologia de biocombustíveis e prometeram diminuir a dependência do petróleo e de outros combustíveis fósseis não renováveis em seus países. No final de março, Lula foi recebido em Camp David (foto) para discutir o etanol como commodity mundial e a retomada da Rodada Doha, da OMC.
Foto: Getty Images/R. Sachs-Pool
Março de 2009: Lula visita Obama
No seu primeiro encontro, os dois presidentes anunciaram a criação de um grupo de trabalho para a reunião do G20, que aconteceu no mês seguinte em Londres, para buscar uma estratégia comum para enfrentar, na época, a crise econômica mundial, aumentar a confiança no sistema financeiro e recuperar as economias afetadas pelo maior crash vivido pelo mundo desde a década de 1930.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Reynolds
Abril de 2012: Dilma visita Obama
Dilma Rousseff mostrou preocupação com a depreciação das moedas dos países ricos em consequência das políticas monetárias deles para conter a crise, dizendo que esse desequilíbrio afeta todas as nações, principalmente as emergentes. Barack Obama disse que a relação dos dois países "nunca esteve mais forte" e discutiu com a brasileira temas como narcotráfico, intercâmbio estudantil e combustíveis.
Foto: Carolyn Kaster/AP Photo/picture alliance
Junho de 2015: Dilma visita Obama
A reunião marcou a superação de um imbróglio diplomático depois de documentos da Agência de Segurança Nacional (NSA) vazados por Edward Snowden mostrarem que os EUA também espionavam Dilma. Por causa do escândalo, ela chegara a cancelar uma visita de Estado a Obama em outubro de 2013. No encontro de 2015, Dilma tentou atrair investimentos, prometeu reduzir a poluição e aumentar o reflorestamento.
Foto: Getty Images/C. Somodevilla
Março de 2019: Bolsonaro visita Trump
Foi a primeira visita de Estado de Jair Bolsonaro – e a viagem foi bem-sucedida para o então presidente brasileiro. O fato de ele ter se encontrado com fiéis foi bem recebido entre seus eleitores evangélicos. Para militares e para a economia, ele conseguiu a promessa de Trump de apoiar o status de aliado preferencial na Otan e a entrada do Brasil na OCDE.
Foto: Allen Eyestone/ZUMAPRESS.com/picture alliance