Ao abandonar os curdos, aliados de longa data, e abrir caminho para ofensiva turca, EUA deixam vácuo numa das áreas mais instáveis do Oriente Médio. Entenda como Irã, Rússia e até o "Estado Islâmico" devem sair ganhando.
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A decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de retirar soldados americanos do norte da Síria, abrindo caminho para uma ofensiva turca contra a minoria curda, pode favorecer Rússia, Irã, o regime sírio de Bashar al-Assad e o "Estado Islâmico" (EI).
Ainda não se sabe até onde a Turquia pretende avançar contra os curdos e ocupar o espaço deixado pelas tropas americanas. Mas Ancara quer expulsar as Forças Democráticas Sírias (SDF), em grande parte curdas, que vê como uma ameaça doméstica, enquanto, segundo argumenta, criaria uma "zona segura" para o regresso de milhões de refugiados sírios hoje em território turco.
A pergunta agora é como Moscou, Teerã e Damasco reagirão, no que parece ter sido uma troca de favores entre a Turquia e os principais membros do chamado Processo de Astana – uma iniciativa de paz para a Síria conduzida pela Rússia e Irã, países que apoiam o regime de Assad.
Fato é que os curdos da Síria estão agora enfraquecidos nas negociações para uma aliança com Assad, a fim de repelir a Turquia. Duas tentativas anteriores de diálogo fracassaram, mas há sinais de que Damasco poderá fazer regressar à sua órbita, em troca de apoio militar, as áreas controladas pelos curdos.
Os curdos são aliados americanos desde a invasão do Iraque, em 2003. Desde 2011, recebem apoio dos EUA para combater o "Estado Islâmico". Os curdos, que somam até 40 milhões de pessoas espalhadas entre Síria, Turquia, Irã e Iraque e não possuem território próprio, também combatem o regime de Assad e são inimigos do governo turco, que considera as SDF um grupo terrorista.
Espaço para a Rússia
A retirada dos EUA abriu condições para Moscou consolidar a sua posição como potência numa eventual paz síria ao devolver Idlib, no oeste do país, às forças de Assad.
Como parceiro militar-chave das forças do regime sírio, a Rússia se viu frustrada pela incapacidade da Turquia de desarmar os rebeldes jihadistas em Idlib. Mas o aparente acordo com a Turquia significa que muitos rebeldes serão atraídos para uma nova frente, aberta por uma invasão turca no leste.
Isto permitiria à Rússia dar luz verde a Assad para recuperar território-chave numa das frentes finais da guerra síria, que já se estende por oito anos.
A Rússia quer que os EUA abandonem a Síria e afirma repetidamente que acredita que os americanos estão na Síria ilegalmente.
Embora Rússia e Turquia apoiem lados opostos na guerra síria, Moscou vê como positiva uma retirada total dos EUA da Síria, pois daria aos russos ainda mais poder – não apenas para moldar o futuro da Síria, mas em todo o Oriente Médio.
A volta do "Estado Islâmico"?
Brett McGurk, antigo representante dos EUA na coalizão global contra o "Estado Islâmico", descreveu a decisão de Trump como um "presente à Rússia, ao Irã e ao EI". Já Salih Muslim, porta-voz do Partido de União Democrático, aliado das forças curdas, teme que o território curdo seja invadido pelos radicais salafistas de Idlib.
"A Turquia vai trazer todos os jihadistas para mais perto desta área e possivelmente estabelecer um tipo de território que pertence apenas aos salafistas", disse Salih Muslim. "A Turquia estava feliz antes, quando eles estavam na fronteira e estava negociando com eles e obtendo petróleo deles. Talvez a Turquia vá estabelecer um novo califado."
A SDF também terá de lidar com os cerca de 70 mil combatentes do "Estado Islâmico" detidos em campos sob o seu controle, num momento em que concentrará as suas forças numa batalha ao norte, com a Turquia.
Salih Muslim questiona a declaração de Trump de que a Turquia vai agora assumir a responsabilidade pelos detidos. "Os membros do ‘Estados Islâmico' foram apoiados pela Turquia, até mesmo armados por eles e enviados para a Síria. Então, como podem tornar-se responsáveis por eles? Eles vão reorganizá-los e usá-los como chantagem contra a Europa."
Irã fortalecido
O Irã também sairá ganhando, numa situação em que qualquer retirada dos EUA da região lhe permite expandir a sua influência regional. O vácuo deixado por uma retirada dos EUA permite que Teerã consolide suas forças na Síria em meio a uma "guerra por procuração" com Israel.
Essa perspectiva pode antagonizar Israel, que já bombardeou seguidas vezes a Síria com o objetivo declarado de atingir instalações e linhas de abastecimento iranianas. Pode também encorajar Israel a estender sua própria "zona segura" no sul da Síria para se contrapor ao Irã e seu aliado libanês, o Hisbolá.
O ataque contra a minoria curda é considerado por observadores como potencialmente a maior mudança em anos na guerra síria, ao envolver diretamente potências globais e regionais. A decisão de Trump de sair da região foi denunciada pelos curdos como uma punhalada nas costas, crítica repetida também dentro dos EUA, inclusive por membros do Partido Republicano.
O que se iniciou com protestos pacíficos em 2011 virou uma guerra civil brutal que já matou centenas de milhares de pessoas e fez milhões de refugiados. Reveja os principais acontecimentos.
Foto: Reuters/Stringer
2011: O início
Em 15 de março de 2011, protestos pacíficos contra a detenção de jovens acusados de fazer pichações antigoverno em sua escola, na cidade de Daraa, são reprimidos por forças de segurança, que abrem fogo contra manifestantes desarmados, matando quatro. Os protestos continuam por vários dias, fazendo 60 mortos e se espalham por todo o país. Segue-se um período de repressão violenta.
Foto: Anwar Amro/AFP/Getty Images
2011/2012: Isolamento internacional
O ex-presidente Barack Obama insta o presidente Bashar al-Assad a renunciar, e os EUA anunciam sanções a Assad em maio e congelam bens do governo sírio nos EUA em agosto de 2011. A União Europeia também anuncia sanções, em setembro. Em novembro, a Liga Árabe suspende a Síria e impõe sanções ao regime. Também a Turquia anuncia uma série de medidas, incluindo sanções, em dezembro.
Foto: AP
2012: Observadores internacionais desistem
Em dezembro de 2011, a Síria permite a entrada de observadores da Liga Árabe para monitorar a retirada de tropas e armas de áreas civis. A missão é suspensa em janeiro de 2012. Em fevereiro, os EUA fecham sua embaixada em Damasco. Em abril de 2012, chegam observadores da ONU, que partem dois meses depois por falta de segurança.
Foto: REUTERS
2013: Ataque com gás
Em março, um ataque com gás mata 26 pessoas, ao menos a metade deles soldados do governo, na cidade de Khan al-Assal. Investigação da ONU conclui que foi usado gás sarin. Em agosto, outro ataque com gás mata centenas em Ghouta Oriental, um subúrbio de Damasco controlado pelos rebeldes. A ONU afirma que mísseis com gás sarin foram lançados em áreas civis. Os EUA e outros países culpam regime sírio.
Foto: picture-alliance/AP Photo
2013: Destruição de armas químicas
Em agosto, investigadores da ONU chegam à Síria para averiguar o uso de armas químicas, em meio a denúncias de médicos e ativistas. EUA afirmam que 1.429 pessoas morreram num ataque, e Obama pede ao Congresso autorização para ação militar. Em setembro, o Conselho de Segurança da ONU ameaça usar a força e, em outubro, Damasco inicia a destruição de seu arsenal declarado de armas químicas.
Foto: AFP/Getty Images
2014: EUA atacam "Estado Islâmico"
Em setembro, os EUA iniciam ataques aéreos a alvos do "Estado Islâmico" na Síria. Em outubro, o mediador da ONU, Staffan de Mistura, começa a negociar uma trégua ao redor de Aleppo, mas o plano fracassa meses depois.
Foto: picture-alliance/AP Photo/V. Ghirda
2015: Rússia entra no conflito
Em setembro, a Rússia, que desde o início fornecera ajuda militar ao governo sírio nos bastidores, entra ativamente no conflito, bombardeando opositores do regime. A ajuda se mostra decisiva, e a guerra civil passa a pender para o lado de Assad, que nos meses seguintes recupera território perdido para os rebeldes.
Foto: Reuters/Rurtr
2016: Governo controla Aleppo
A ONU e a Opac afirmam que tanto militares sírios quanto o "Estado Islâmico" usaram gás em ataques a opositores. O ano é marcado por várias tentativas de tréguas. Em setembro, a cidade de Aleppo é alvo de 200 ataques aéreos por forças pró-Assad num fim de semana. Em dezembro, as forças governamentais assumem controle de Aleppo, encerrando quatro anos de domínio dos rebeldes.
Foto: Getty Images/AFP/G. Ourfalian
2017: Ataque em Idlib
Em fevereiro, Rússia e China vetam resolução do Conselho de Segurança da ONU pedindo sanções ao governo sírio pelo uso de armas químicas. Em abril, ao menos 58 pessoas morrem na província de Idlib, dominada pelos rebeldes, no que aparenta ser um ataque com gás. Testemunhas afirmam que o ataque foi executado por jatos sírios e russos, mas tanto Moscou quanto Damasco negam bombardeio.
Foto: Getty Images/AFP/O. H. Kadour
2017: Resposta dos EUA
Em abril, os EUA lançam dezenas de mísseis sobre a base militar de onde se acredita ter saído o ataque em Idlib. Em maio, o presidente Donald Trump aprova planos para armar combatentes das milícias curdas YPG na luta contra o "Estado Islâmico". A medida enfurece a Turquia, que vê as YPG como um grupo terrorista. Em outubro, o "Estado Islâmico" perde o controle de Raqqa, sua autoproclamada capital.
Em janeiro, aviões turcos bombardeiam a região curda de Afrin, dando início à operação contra as YPG intitulada "Ramo de Oliveira". A Turquia anuncia a morte de centenas de "terroristas", mas entre os mortos estão dezenas de civis, dizem ativistas. Em fevereiro, as milícias YPG chegam a acordo com o regime sírio para o envio de tropas pró-governo para auxiliar no combate aos turcos em Afrin.
Foto: picture alliance/AA/E. Sansar
2018: Ofensiva em Ghouta Oriental
Em 21 de fevereiro, tropas pró-regime executam ofensiva em larga escala contra enclave rebelde localizado ao leste de Damasco. Em torno de 400 mil civis ficam sitiados, com acesso limitado a alimentos e cuidados médicos. Os ataques matam centenas de pessoas. No dia 24 de fevereiro, o Conselho de Segurança da ONU aprova trégua humanitária de 30 dias vigente em todo o território sírio. Ela fracassa.
Foto: Reuters/B. Khabieh
2018: O bombardeio ocidental
Após dias de ameaça, em 14 de abril Trump anuncia o lançamento de mais de cem mísseis, em conjunto com França e Reino Unido, na Síria. O ataque é uma retaliação ao ataque químico na cidade de Duma, que matou dezenas de civis e que o Ocidente atribui ao regime de Bashar al-Assad.
Foto: picture-alliance/AP Photo/L. Matthews
2019: Estados Unidos começam a se retirar da Síria
Em janeiro de 2019, os Estados Unidos começaram a se retirar da Síria. O presidente americano afirmou que o Estado Islâmico havia sido derrotado e, por isso, a presença dos EUA não seria mais necessária. A decisão foi contestada dentro do próprio governo e também pelas milícias curdas na Síria, aliadas dos EUA, que temiam enfraquecer-se.
Foto: Getty Images/AFP/D. Souleiman
2019: fim do autoproclamado califado do EI
Em março de 2019, as Forças Democráticas Sírias (FDS), aliança liderada por curdos, anunciaram que o autoproclamado califado do Estado Islâmico foi totalmente eliminado, após combates em Baghouz, considerado o último reduto jihadista na Síria. Militantes curdos e árabes das FDS, apoiados pela coalizão internacional liderada pelos EUA, combatiam há várias semanas os jihadistas.