Anexação altera economia e eleva presença militar na Crimeia
Roman Goncharenko/ Yulia Vyshnevetskaya (cn)15 de março de 2015
Um ano depois da anexação, Rússia amplia contingente militar e cogita estacionar armas nucleares na península. Por causa das sanções, empresas dos EUA deixam a Crimeia.
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Em dias de tempestade no Estreito de Kerch, no leste da Crimeia, o tráfico de balsas até o território russo é interrompido. Essa suspensão pode durar dias, causando engarrafamentos quilométricos, além de comprometer o abastecimento de alimentos e outros bens na península.
Há um ano, quando a Rússia anexou a Crimeia, o estreito de Kerch se tornou uma das principais rotas de abastecimento da península. Kiev e Moscou fecharam as demais ligações: não há mais tráfego aéreo ou ferroviário e nem ônibus de passageiros. Quem quer ir da Crimeia para a Ucrânia, ou vice-versa, depende de pessoas que ofereçam esse serviço ou tem que ir a pé.
Além disso, Kiev interrompeu grande parte do abastecimento de água para a região. Eletricidade e alguns alimentos, no entanto, continuam vindo da Ucrânia.
Há poucos dias, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, revelou detalhes da anexação da Crimeia num documentário da televisão estatal. Putin admitiu que a decisão sobre a "retomada" da antiga península russa foi tomada em fevereiro. O motivo, de acordo com o chefe do Kremlin, seria uma pesquisa de opinião que revelara que 75% dos habitantes da península supostamente queriam fazer parte da Rússia.
Um referendo realizado na região no dia 16 de março de 2014, e controlado por soldados russos sem insígnias, mostrou que 96% da população era a favor da unificação. O resultado não tem confirmação independente.
A Ucrânia, os países ocidentais e a Assembleia Geral da ONU consideram que a ação da Rússia na Crimeia fere o direito internacional e por isso não reconhecem a anexação.
De acordo com o instituto de pesquisa estatal russo WZIOM, uma pesquisa realizada em fevereiro mostrou que 90% da população continua a favor da "reunificação com a Rússia". Também esse número não é confirmado por fontes independentes. Especialistas ucranianos duvidam de uma taxa tão alta de aceitação.
Sem Apple, com armas nucleares
Desde a anexação, mais de 2,3 milhões de habitantes da Crimeia vivem uma nova realidade. A mobilidade é apenas um dos problemas. As sanções à Rússia, aplicadas pelo Ocidente, levaram muitas empresas americanas a deixar a península.
Na Crimeia não há mais lanchonetes do McDonald's, por exemplo. As duas maiores empresas de cartão de crédito do mundo, Visa e Mastercard, também não operam mais lá. As lojas da Apple na Crimeia foram fechadas. A lista é muito maior.
As maiores mudanças, porém, não aconteceram na economia, mas no setor militar. A Rússia está transformando a Crimeia numa fortificação militar, e em ritmo acelerado. De acordo com a imprensa estatal russa, o número de soldados do país na península pode passar dos atuais 25 mil para mais de 40 mil.
A remessa de combustível para o Exército mais do que dobrou. As tropas russas na Crimeia estão sendo equipadas com novos tanques, navios de guerra e aviões. Há também rumores sobre um possível arsenal nuclear na península. Moscou não excluiu essa opção.
Salário diminuiu
O ano passado foi marcado por grandes modificações: moeda russa, empresas russas e legislação da Rússia. No início, muitos festejaram, principalmente os salários russos, mais elevados. Aos poucos, porém, a alegria se esvaiu, afirma Oleg Skromnov *.
"No início, os salários dos funcionários públicos da Ucrânia dobraram. Mas depois eles foram ajustados às tarifas dos servidores públicos russos, e não são mais tão atraentes. Minha mulher, que trabalha num hospital, recebe hoje só a metade do que recebia, e os preços subiram", diz Skromnov.
Ele diz que quer vender sua casa em Simferopol e se mudar para Kiev. O isolamento crescente do território ucraniano é motivo suficiente para deixar a Crimeia, acrescenta.
Discriminação dos tártaros
Principalmente as pessoas que se recusaram a receber um passaporte russo são as que mais enfrentam dificuldades no dia a dia. Em 2014, a taxa de emissão era de 300 rublos. Hoje ela é de 3.500 rublos – aproximadamente 175 reais –, diz o advogado Schan Sapruta, de Simferopol.
Os tártaros da Crimeia foram os que mais recusaram a cidadania russa. Esse grupo étnico é considerado o grande perdedor da anexação. São frequente as notícias sobre desaparecimento de líderes dessa minoria. Alguns são encontrados mortos.
O comissário de Direitos Humanos do Conselho da Europa, Nils Muiznieks, denunciou alguns casos num relatório. Relatos de que a polícia e o serviço secreto russos intimidam os tártaros são frequentes.
A maioria dos cerca de 30 mil tártaros assumiu uma posição pró-Ucrânia durante a anexação da Crimeia. Seus principais líderes políticos, como Refat Tschubarov, se mudaram para Kiev e não podem retornar, pois a Rússia os impede de entrar na Crimeia.
* Nome alterado a pedido do entrevistado
Cronologia do conflito na Ucrânia
Um conflito político interno levou Moscou e Ocidente ao período de maior hostilidade em mais de duas décadas. As inquietantes memórias da Guerra Fria retornaram ao noticiário internacional com a crise no leste ucraniano.
Foto: AFP/Getty Images/S. Supinsky
Milhares nas ruas em Kiev
A partir de 21 de novembro de 2013, uma onda de manifestações exigindo a renúncia do presidente Viktor Yanukovytch tomou conta de Kiev. Ao ceder à pressão de Moscou e rejeitar acordo de associação com a União Europeia (UE), Yanukovytch enfrentou a ira da população. Eram os maiores protestos desde a chamada "Revolução Laranja", de 2004. Moscou disse que protestos queriam abalar um governo legítimo
Foto: Getty Images/Afp/Genya Savilov
Repressão gera mais revolta
Yanukovytch se abriu ao diálogo com a oposição. Mesmo assim, a violência policial durante a repressão ao movimento prevaleceu. As unidades "Berkut", conhecidas pela brutalidade, atuaram contra os manifestantes na Praça da Independência e nos bloqueios às sedes do governo em Kiev. Opositores e jornalistas alegavam ser atacados, assediados e perseguidos pelo governo.
Foto: picture-alliance/dpa/Maxim
Banho de sangue em Kiev
Durante quase três meses de manifestações, dezenas de pessoas foram mortas devido à repressão policial. Um dos símbolos dos momentos mais dramáticos na “Maidan", Praça da Independência em Kiev, foi o Hotel Ucrânia, que serviu de hospital, necrotério e base da imprensa. Funcionários contam que, no ápice da violência, corpos se amontoavam no lobby.
Foto: DW/A. Sawitzkiy
A queda de Yanukovytch
No fim de fevereiro, o presidente Yanukovytch fugiu para a Rússia, acusando o Ocidente de alimentar os protestos. Para ele, o acordo alcançado com a oposição não foi cumprido. O pacto definia eleições presidenciais em 25 de maio de 2014 – consideradas por ele ilegítimas - a convocação de um governo de coalizão, a diminuição do poder do presidente e o aumento da influência do Legislativo.
Foto: Reuters
Aumenta tensão militar
Após avanço de militantes com armamento russo no leste da Ucrânia, Kiev acusou Moscou de conduzir uma "guerra". A Rússia começou então, em março de 2014, a tomar bases militares na Crimeia. A Ucrânia preparou a retirada de seus cidadãos da península e disse que autoridades do governo não puderam entrar no território. O Ocidente começava aumentar a pressão sobre Moscou com sanções.
Foto: AFP/Getty Images
Crimeia é anexada
Em referendo realizado em 16 de março de 2014, 96,6% dos eleitores da península ucraniana da Crimeia optaram por integrar a Federação Russa. A participação foi estimada em 82,71%. O Parlamento da Crimeia declarou a independência e pediu a adesão à Rússia. No dia 20 de março, a Duma (câmara baixa do Parlamento russo) ratificou o tratado para incorporação da Crimeia ao país.
Foto: Reuters
República Popular de Donetsk
Em abril de 2014, os separatistas proclamaram a República Popular de Donetsk e ampliaram o domínio sobre o leste do país, ocupando Horlivka. O líder separatista ucraniano Vyacheslav Ponomaryov rejeitou negociações sobre a libertação de sete inspetores da OSCE enquanto vigorassem as sanções da União Europeia contra personalidades públicas russas e ucranianas.
Foto: Reuters
Leste busca anexação à Rússia
Depois de um controverso “referendo”, líderes de Donetsk e Lugansk passaram a buscar a integração ao território russo. No dia 12 de maio, as duas regiões declararam independência. Insurgentes pediram que Moscou anexasse as regiões, mas o governo de Putin se distanciou da ideia. Pró-russos ignoraram acordo para paz e não entregaram armas.
Foto: Reuters
Novo presidente na Ucrânia
Em 25 de maio, o magnata Petro Poroshenko venceu as eleições presidenciais ucranianas já no primeiro turno, com cerca de 55% dos votos. Kiev anunciou intensificação dos combates até “aniquilar" as forças separatistas e recuperar o aeroporto de Donetsk, em um confronto que deixou 40 mortos. A Rússia exigiu cessar-fogo e acusou o país vizinho de usar as Forças Armadas contra a própria população.
Foto: MYKOLA LAZARENKO/AFP/Getty Images
A queda do MH17
Um avião da Malaysia Airlines, que partiu de Amsterdã com destino a Kuala Lumpur, foi alvejado por separatistas pró-Rússia no dia 17 de julho de 2014. No voo MH17 havia 280 passageiros e 15 tripulantes. A maior parte era de nacionalidade holandesa. Dez dias depois, peritos ainda não tinham acesso aos destroços do avião devido aos combates.
Foto: Reuters/Maxim Zmeyev
Kiev pede ajuda aos EUA
Em setembro, o presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko (esq.), pediu aos Estados Unidos apoio militar para combater os separatistas pró-russos. Num discurso na Casa Branca, em Washington, ele afirmou que a Rússia é uma ameaça à segurança mundial. "Se eles não forem contidos agora, vão atravessar as fronteiras da Europa e espalhar seu domínio pelo globo", afirmou.
Foto: picture-alliance/TASS/Ukrainian presidential press service
Leste empossa líder pró-Moscou
Em novembro, o chefe interino da chamada República Popular de Donetsk, Alexander Zakharchenko, venceu por ampla maioria as eleições na região rebelde. Lideranças políticas e militares ignoraram que Kiev e grande parte do Ocidente não reconheciam a votação. Kiev acusou a Rússia de estar movimentando tropas e enviando equipamentos às regiões separatistas do Leste.
Foto: Alexander Khudoteply/AFP/Getty Images
Negociações em Minsk
No fim de 2014, o número de deslocados internos chegaram a 460 mil segundo a ONU. Após seis meses de acordos de cessar-fogo violados, i governo da Ucrânia e rebeldes separatistas retomaram negociações de paz em 24 de dezembro de 2014 em Minsk, capital de Belarus. Além do cessar-fogo duradouro, estiveram em pauta a retirada de armas pesadas, a ajuda humanitária e a troca de prisioneiros.
Foto: picture-alliance/dpa
Acumulando fracassos
No início de fevereiro de 2015, confrontos entre as tropas do governo da Ucrânia e separatistas pró-russos intensificaram-se em Donetsk, Lugansk e Debaltseve, na sequência do fracasso das negociações de um cessar-fogo para a região. Debaltseve, sob controle de Kiev, interliga por via ferroviária Donetsk e Lugansk, ocupadas pelos rebeldes.
Foto: Getty Images/AFP/A. Boiko
Novo esforço diplomático
A chanceler federal alemã, Angela Merkel, e o presidente francês, François Hollande, fizeram em fevereiro uma viagem surpresa a Kiev e Moscou antes da Conferência de Munique, em um novo esforço diplomático. Eles levaram uma proposta baseada no respeito à integridade territorial da Ucrânia. Novos números do conflito foram divulgados: mais de 5.100 mortos e 900 mil deslocados desde abril de 2014.
Foto: Leon Neal/AFP/Getty Images
Longas negociações levam ao cessar-fogo
Depois de horas de negociação em Minsk, chefes de governo da Ucrânia, Rússia, Alemanha e França, além de líderes separatistas, chegaram a um acordo sobre o cessar-fogo no leste da Ucrânia. Foi definida a retirada das armas pesadas da linha de frente dos combates. A Europa aumentou os esforços para a paz especialmente depois de os EUA avaliarem a possibilidade de enviar armas e munição à Ucrânia.