Ano de queda de barreiras ideológicas na América Latina
Astrid Prange (av)17 de dezembro de 2015
Cuba, Colômbia e Argentina são exemplos de que a região tradicionalmente marcada pelo embate entre capitalismo e socialismo vai cedendo às exigências do pragmatismo. A grande perdedora é claramente a esquerda.
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A guinada para o pragmatismo político na América Latina já começou em 17 de dezembro de 2014. Nesse dia, os presidentes de Cuba, Raúl Castro, e dos Estados Unidos, Barack Obama, anunciaram a intenção de normalizar as relações diplomáticas recíprocas. Seis meses mais tarde, em 20 de julho, a embaixada cubana em Washington era inaugurada, após 50 anos de relações congeladas.
Depois dessa reaproximação, apoiada a partir dos bastidores pelo papa Francisco, o primeiro latino-americano a ocupar o trono papal emitiu mais um sinal de reconciliação política ao suspender o bloqueio à beatificação de Óscar Romero. O ex-arcebispo de El Salvado foi declarado beato em 23 de maio de 2015.
Desde então, o arcebispo, assassinado 35 anos atrás durante uma missa, passou a ser considerado também pela Igreja Católica um pioneiro dos direitos humanos. Durante décadas, ele fora estigmatizado como comunista, devido a sua resistência à ditadura militar.
Com a palavra, o pragmatismo
Também o presidente colombiano, o conservador Juan Manuel Santos, fez um gesto de conciliação. Há três anos ele realiza negociações de paz em Havana com a organização guerrilheira Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Em 23 de setembro deste ano, Santos estendeu a mão a seu arqui-inimigo, o líder de guerrilha Rodrigo Londoño, vulgo "Timochenko". Após mais de meio século de uma guerra civil que já custou 300 mil vidas, ambos anunciaram, na presença do presidente cubano, a intenção de assinar um acordo de paz em 23 de março de 2016.
Para Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, esses gestos representam "o fim definitivo da Guerra Fria na América Latina. "Não se trata mais de comunismo ou capitalismo, mas de pragmatismo", explicou o especialista em assuntos latino-americanos.
Governos esquerdistas abandonam a cena
O namoro entre capitalistas norte-americanos e revolucionários veteranos sul-americanos reorganiza o mapa político da região. "Com a reaproximação entre Cuba e os EUA, encerra-se um dos grandes temas dos esquerdistas latino-americanos", afirmou Stuenkel à DW, em meados do ano. "Isso vai fortalecer o papel dos EUA na América Latina e beneficiar a dinâmica regional."
A profecia do professor se cumpriu. Tanto nas eleições presidenciais da Argentina, em 22 de novembro, como nas parlamentares da Venezuela, em 6 de dezembro, as oposições nacionais registraram vitória sobre os governos populistas de esquerda.
Na Argentina, o liberal Mauricio Macri deu fim aos 12 anos da era Kirchner. Na Venezuela, a aliança oposicionista Mesa de Unidade Democrática (MUD) conseguiu dois terços de maioria no Parlamento. No futuro, o chefe de Estado chavista Nicolás Maduro terá uma resistência bem maior a enfrentar.
No Brasil, a presidente Dilma Rousseff, de fato, assumiu seu segundo mandato em 1º de janeiro de 2015. Mas também foi forçada a dar uma guinada conservadora e enfrenta um processo de impeachment, liderado pela oposição.
Foi-se o tempo das vacas gordas
A crise da esquerda naturalmente não se deve apenas ao degelo entre Washington e Havana. O fator decisivo são os graves problemas econômicos. Esgotou-se a magia do conto de fadas latino-americano do crescimento, que tanta admiração mundial despertara, graças a seu bem sucedido combate à pobreza.
O Banco Mundial prevê um recuo do desempenho econômico da região de 0,3% em 2015. A queda do preço do petróleo e a redução da demanda chinesa resultam num faturamento mais baixo com exportações e, com isso, menores investimentos estatais em programas sociais e na ampliação da infraestrutura pública.
Em compensação, muitos latino-americanos esperam um bônus de paz em 2016. Dois acontecimentos já são certos: a assinatura do acordo de paz na Colômbia, em março; e os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em agosto. Há mesmo quem tenha esperanças do fim do embargo comercial dos EUA a Cuba.
EUA e Cuba: crônica da rivalidade
Desde a Revolução Cubana, em 1959, Cuba e os Estados Unidos estão em disputa, que já envolveu mercenários, bloqueios navais, sanções econômicas, criminosos e carros de boi.
Foto: picture-alliance/dpa
Bordel dos EUA
Antes da revolução, Cuba era, para muitos americanos, sinônimo de jogos de azar, casas noturnas e outros tipos de entretenimento – como um jantar no Havana Yacht Club (foto). "Cuba era o bordel dos EUA", definiu mais tarde o cientista político americano Karl E. Meyer. Para a população, a ditadura de Fulgencio Batista, no entanto, significava principalmente estagnação, desemprego e pobreza.
Para derrubar o regime já falido, Fidel Castro precisa de apenas um exército de guerrilha de algumas centenas de homens. Em 1° de janeiro de 1959, Batista foge de Cuba, e os rebeldes tomam Havana. Os EUA impõem sanções imediatamente, que vão sendo intensificadas nos anos seguintes. A liderança cubana, então, recorre à União Soviética.
Foto: picture-alliance/dpa
Fiasco na Baía dos Porcos
Uma tropa mercenária de cubanos exilados tentou derrubar o regime em 1961, com ajuda da CIA. A operação foi um fiasco. O Exército Revolucionário Cubano acaba com a invasão na Baía dos Porcos dentro de três dias, afirmando ter feito mais de mil prisioneiros.
Foto: AFP/Getty Images/M. Vinas
À beira de uma guerra nuclear
Devido ao relacionamento abalado entre EUA e Cuba, a União Soviética, passa, de repente, a dispor de uma base localizada a apenas cerca de 150 quilômetros dos Estados Unidos. O Kremlin quer estacionar mísseis na ilha. E, em 1962, a crise cubana deixa o mundo à beira de uma guerra nuclear. Com um bloqueio naval, os Estados Unidos impedem o transporte dos mísseis.
Foto: picture-alliance/dpa
Saúde e educação exemplares
A União Soviética não poupa esforços. Por décadas, Cuba é fortemente subsidiada, recebendo, entre outras coisas, petróleo bruto, que é reexportado pela ilha para obtenção de divisas. Cuba consegue, assim, construir sistemas de saúde e de educação exemplares.
Foto: picture-alliance/dpa
O êxodo dos marielitos
Em 1980, Fidel Castro permite que emigrantes deixem o país a partir do Porto de Mariel, com destino aos Estados Unidos. Cerca de 125 mil cubanos chegam à Flórida. Entre eles, estão alguns que haviam sido libertados pela administração cubana de prisões e hospitais psiquiátricos. A taxa de criminalidade em Miami aumenta drasticamente.
Foto: picture-alliance/Zuma Press/T. Chapman
Dependência açucarada
Por décadas, o embargo dos EUA limita a economia cubana de forma maciça. Além disso, não ocorre diversificação alguma. A cana-de-açúcar permanece sendo, mesmo após a revolução, o principal produto de exportação da ilha. Cuba continua totalmente dependente da assistência da União Soviética, algo que fica bastante claro a partir de 1990.
Foto: AFP/Getty Images/N. Barroso
"Período especial em tempo de paz"
Com o colapso da União Soviética, vem a quebra da economia cubana. Tudo passa a faltar. Fidel Castro declara a época de choque da economia cubana, a partir de 1990, como o "Período Especial em Tempos de Paz". Na ausência de combustível e peças de reposição, bois passam a ser usados como meio de transporte. Desde o final da década de 1990, a Venezuela fornece petróleo a preço baixo ao país.
Foto: AFP/Getty Images/A. Roque
O vai e vem das sanções
Desde 1993, a Assembleia Geral das Nações Unidas apela todos os anos para que os EUA acabem com sua política de embargo. Os EUA apertam e desapertam os parafusos das retaliações de tempos em tempos. Assim, as regulamentações do bloqueio ficam mais rigorosas em 1996 e mais relaxadas em 1999. Em 2004, o presidente George W. Bush endurece as sanções.
Foto: Getty Images/J. Raedle
Um novo capítulo se inicia
Após a libertação do prisioneiro americano Alan Gross e de três agentes cubanos presos nos EUA desde 1998, Raúl Castro e Barack Obama surpreendem o mundo ao anunciar, no dia 17 de dezembro de 2014, que normalizarão as relações diplomáticas entre os dois países e reabrirão suas embaixadas. Obama amplia as exceções ao embargo econômico e comercial sobre a ilha.
Pouco mais de seis meses após o anúncio da retomada das relações diplomáticas, Obama anuncia em 1º de julho de 2015 a reabertura das embaixadas dos EUA e de Cuba em Havana e Washington dentro de alguns dias. Desde dezembro de 2014, passos tomados para a reaproximação incluem a retirada de Cuba da lista de países que financiam o terrorismo e a libertação de presos políticos pelo governo cubano.