Política indigenista
25 de novembro de 2006Entre os cerca de 370 mil índios existentes no Brasil, os guarani e seus subgrupos kaiowa, ñandéva e mbya formam a maior etnia. A maior parte vive no Mato Grosso do Sul, Estado dominado por grandes plantações de soja e fazendas de gado. No município de Dourados, por exemplo, 11 mil índios vivem numa área de 3500 hectares.
Desde os anos 90, registra-se um aumento da taxa de suicídios entre esses indígenas. No ano passado, cinco crianças kaiowa morreram por desnutrição. Uma comissão externa da Câmara dos Deputados concluiu que a falta de terra é a principal causa do problema.
O antropólogo Rubem Thomaz de Almeida é um dos maiores conhecedores no Brasil da cultura e da realidade dos índios guarani e kaiowa de Mato Grosso do Sul. Já realizou vários estudos científicos sobre a etnia e assessorou órgãos governametais e ONGs que atuam na região. DW-WORLD falou com ele sobre a situação dos guarani e a política indigenista do governo brasileiro.
DW-WORLD: Como está a situação atual dos guarani no Mato Grosso do Sul?
Rubem Thomaz de Almeida: A situação dos guarani do Mato Grosso do Sul se acirrou e piorou consideravelmente, depois do trágico episódio do assassinato dos dois policiais civis no Paso Piraju em 1º. de abril de 2006. Nos 33 anos em que atuo com os guarani, nunca vi uma situação tão problemática como hoje, em especial por inoperância e omissão do Estado. A atual gestão da Funai [Fundação Nacional do Índio] simplesmente "abandonou" os guarani do Mato Grosso do Sul. Ela não atua para amenizar a situação, mas aloca o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) para assistir os índios. O Ministério Público defende com unhas e dentes os índios, mas a Justiça não reconhece sequer os relatórios de identificação de terras feitos pelos antropólogos e cria espaço para prisões aleatórias de índios. É um Estado esquizofrênico em relação aos índios. O que se observa no Mato Grosso do Sul são formas etnocIdas contra os índios, em especial da Justiça e das polícias. Os problemas têm se multiplicado e, para mim, são procedimentos genocidas.
Qual é o balanço que senhor faz da política indigenista brasileira desde a Constituição de 1988, que ampliou os direitos dos povos indígenas?
A política indigenista brasileira não sofreu grandes variações, apesar do cuidado da Constituição 1988 com os povos indígenas do país. O que se observa, por exemplo, é que a referida Constituição abriu vários espaços favoráveis aos índios, cabendo destaque às atribuições do Ministério Público. Mas a política indigenista em si não mudou muito, porque os responsáveis por sua condução atendem interesses políticos e econômicos vários, e não cumprem a lei. Há séculos as leis relativas aos índios são favoráveis, o que não significa que sejam cumpridas. E isso não é nenhuma novidade neste país.
A política indigenista do atual governo é melhor do que era a dos militares?
O atual presidente da Funai é um dos piores gestores da questão indígena no país. No caso dos guarani, os presidentes da Funai que mais contribuíram com esse grupo étnico foram o general Ismarth de Araújo (1974–1978) e o delegado de Polícia Federal Nelson Marabuto (1985–1986). Na primeira reunião do Conselho Indigenista, do qual me demiti junto com outros quatro colegas em fevereiro de 2005, o presidente da Funai disse que "não levaria problemas ao ministro". A ação indigenista foi absolutamente pífia no governo atual, pelo menos em relação aos guarani, fora, como já disse, o atendimento emergencial: fornecimento de cestas básicas, atendimento de saúde, combate à desnutrição e à fome, entre outras ações do MDS – não da Funai. E esses atendimentos não irão terminar enquanto não for solucionado o problema da terra.
Quais são hoje os principais motivos de conflito entre povos indígenas e brancos no Brasil?
O problema crucial dos conflitos entre brancos e índios é a disputa por terras. Uma parte considerável do problema já foi resolvida com demarcações. Alguns poucos grupos étnicos têm problema com a garantia de suas terras, sobretudo os índios do Nordeste e os guarani. Estes formam uma população entre 60 mil e 65 mil pessoas nos Estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, e especialmente no Mato Grosso, onde somam 42 mil pessoas. São a maior etnia em número e também a etnia que tem mais problemas de terra no país.
No Centro-Oeste e na Amazônia observa-se um "cerco do agronegócio" a terras indígenas. Como os índios reagem a isso?
Não sei como os índios mais ao norte da região Centro-Oeste reagem ou mesmo como o agronegócio está afetando essas populações. Quanto aos kaiowa e ñandéva do Mato Grosso do Sul, o cerco do "agronegócio" vem se fechando há muito tempo. Houve a exploração extensiva da erva-mate (1880–1920), daí veio a exploração de madeira e eliminação de florestas (1920–1960), a implantação de fazendas para gado (1960–1970) e o surgimento de grandes empresas agropecuárias com o plantio de soja (1980–2003). Para os próximos anos, prevê-se a construção de 30 usinas de açúcar e álcool no Mato Grosso do Sul, com plantações de aproximadamente 700 mil hectares de cana-de-açúcar em pleno território tradicional kaiowa e ñandéva, que servirão de mão-de-obra para o plantio e a colheita. O Estado brasileiro não está atento ao problema desses indígenas sem-terra. Por isso mesmo, é obrigado a oferecer-lhes cestas básicas para não morrerem de fome.