1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW
PolíticaArgentina

Argentina, mais uma vez em crise, vai às urnas

22 de outubro de 2023

Disputa acirrada de primeiro turno opõe governista peronista, conservadora macrista e radical "anarcocapitalista", em meio a cenário de degradação econômica e inflação galopante.

Pessoas na Argentina, em frente a uma placa que diz "Cambio, exchange"
Em crise perpétua há décadas, a Argentina chega ao pleito de domingo num cenário econômico ainda mais degradadoFoto: Natacha Pisarenko/AP/picture alliance

Os eleitores da Argentina vão às urnas neste domingo (22/10) para o primeiro turno das eleições presidenciais, num pleito que tem como pano de fundo a crise econômica crônica do país, o enfraquecimento dos principais grupos políticos que lideraram o governo nas últimas duas décadas e a ascensão nas pesquisas de um populista que se pinta como um "anarcocapitalista" e que vem monopolizando as atenções e provocando o temor de uma ruptura radical no país.

A degradação econômica também levou o atual presidente, o impopular Alberto Fernández, de centro-esquerda, a decidir não concorrer à reeleição. Outra notável ausência nas cédulas é a da atual vice-presidente Cristina Kirchner, que vem se mantendo discreta na campanha, após sofrer uma condenação por corrupção no ano passado.

Nesse cenário de economia em frangalhos e ausência de grandes nomes governistas, a disputa se afunilou nos últimos meses entre três nomes: Sergio Massa, atual ministro da economia que carrega tanto a bandeira de uma continuidade do peronismo quanto o fardo da má situação econômica; Patricia Bullrich, candidata do macrismo, que se coloca como figura conservadora linha-dura mas que também enfrenta dificuldades pelos maus resultados da economia sob o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019); e finalmente Javier Milei, o outsider de ultradireita que se tornou um fenômeno eleitoral ao criticar agressivamente os tradicionais grupos políticos do país e defender propostas radicais como a dolarização da Argentina e a extinção do Banco Central.

A interminável crise argentina

Em crise perpétua há décadas, a Argentina chega ao pleito de domingo em um cenário econômico ainda mais degradado, que levou o atual presidente Fernández a desistir de concorrer à reeleição.

O dólar disparou nas últimas semanas, reforçando a agonia do peso argentino. Já a inflação anual na Argentina subiu para 138% em setembro. Hoje, na América do Sul, a inflação argentina só é superada pela da Venezuela, que vive uma crise humanitária.

Os argentinos também estão lutando para sobreviver, com cerca de 40% da população vivendo na pobreza. Os preços subiram 12,7% somente em setembro, de acordo com o instituto de estatísticas do país.

"É uma economia que está em tratamento intensivo", disse Miguel Kiguel, ex-subsecretário de Finanças do Ministério da Economia na década de 1990, à agência Reuters.

A previsão é que o PIB também sofra uma retração de 2,8% em 2023, de acordo com o Banco Central do país.

Analistas apontam que o próximo presidente terá dificuldades para encontrar uma solução rápida para os atuais problemas, que tem raízes em décadas de má administração governamental. Nas últimas oito décadas, o país experimentou apenas quinze anos de inflação abaixo de dois dígitos. Problemas como inflação, custos de produção, falta de investimento, déficit público, precarização do emprego e endividamento externo se tornaram crônicos.

Argentinos procuram comida no lixo. Pobreza atinge 40% da população do país, que já foi um dos mais ricos do continenteFoto: Rodrigo Abd/AP Photo/picture alliance

A má gestão da economia não foi exclusividade de uma corrente ou grupo político. Populistas e conservadores, militares e civis, social-democratas e liberais, esquerda e direita, estatistas e privatistas, peronistas e independentes que se alternaram no poder nas últimas décadas: todos agravaram ou não souberam interromper o declínio do país a longo prazo. Muitos ainda se viram envolvidos em escândalos de corrupção.

Como funciona a votação

Cerca de 35 milhões de eleitores foram convocados para as eleições. Além do pleito presidencial, os argentinos vão eleger metade dos membros da Câmara dos Deputados, um terço do Senado e uma série de governadores provinciais.

No caso da eleição presidencial, o sistema eleitoral argentino, em contraste com o brasileiro, prevê que um candidato possa ser eleito já em primeiro turno mesmo sem 50% mais 1 dos votos válidos.

Na Argentina, existem dois cenários para a vitória de um candidato ainda na primeira rodada.

No primeiro, o presidenciável alcança a vitória se obtiver 45% dos votos. No segundo, o candidato também é declarado vencedor caso alcance 40% dos votos mais uma diferença de 10 pontos percentuais em relação ao segundo colocado. Nesse último cenário, por exemplo, um candidato com 40% vence se o segundo não passar de 30%.

Pelas últimas pesquisas eleitorais, nenhum dos três principais candidatos mostrou ser capaz de alcançar os patamares para ganhar já no primeiro turno. Se isso se confirmar, haverá um segundo turno, previsto para 19 de novembro, com os dois primeiros colocados, no qual ganha quem obtiver mais votos. O próximo presidente tomará posse em 10 de dezembro, para um mandato de quatro anos.

Os candidatos

Cinco candidatos disputam o primeiro turno da eleição argentina: Sergio Massa (peronista aliado ao kirchnerismo), Javier Milei (ultraliberal populista), Patricia Bullrich (conservadora liberal), Juan Schiaretti (peronista anti-kirchnerista) e Myriam Bregman (esquerda).

Eles foram definidos nas primárias de agosto, uma peculiaridade do sistema eleitoral argentino, no qual os eleitores são convocados previamente para escolher quais candidatos vão encabeçar as chapas dos partidos. As primárias servem como um "funil" para definir os candidatos aptos, barrando "nanicos" e resolvendo disputas internas nos partidos.

Dos cinco candidatos, apenas três mostraram ser competitivos nas pesquisas. São eles:

Sergio Massa: camaleão peronista

Atual ministro da Economia do governo Fernández, Sergio Massa é o principal candidato do peronismo neste pleito, sendo uma figura mais de centro do movimento.

Nas últimas semanas, Massa, apesar de ter sua imagem associada ao impopular Fernández, tem reagido nas pesquisas eleitorais, chegando a aparecer em primeiro lugar num dos levantamentos. No entanto, pesa contra ele a atual má situação econômica.

O ministro tem argumentado que o momento é de transição, e que medidas recentemente adotadas ainda vão render frutos. "O pior passou, o melhor está por vir", disse nesta semana.

Javier Milei: o "anarcocapitalista" antissistema

Pré-candidato mais votado nas primárias, Javier Milei, do partido personalista A Liberdade Avança, fundado por ele mesmo, é um economista com pouca experiência política, que faz uso de um discurso antissistema e é adepto de teorias conspiratórias.

Prometendo uma dolarização total da economia e a extinção do Banco Central, ele é rotineiramente comparado ao americano Donald Trump e ao brasileiro Jair Bolsonaro por causa do estilo agressivo e algumas propostas de ultradireita.

Patricia Bullrich: conservadora linha-dura na segurança

Recebendo menos destaque que Massa e Milei na cobertura internacional da eleição argentina está Patricia Bullrich, de 67 anos. Ela é candidata da coalizão Juntos pela Mudança, a aliança política de Mauricio Macri, embora esteja mais à direita que o ex-presidente.

Bullrich parecia inicialmente destinada a ser uma das principais beneficiárias da insatisfação popular com o governo Fernández. Mas a ascensão do ultradireitista Milei acabou estagnando sua campanha.

Ex-ministra da Segurança, sua principal bandeira de campana é o combate ao crime. Ela promete envolver as Forças Armadas na segurança pública e diminuir a maioridade penal para 14 anos. Para o combate à inflação, ela propõe garantir a independência do Banco Central e promover uma reforma do Estado para reduzir gastos.

Leia aqui mais sobre os candidatos.

Javier Milei em ato de campanha. Populista que propõe mudanças ultrarradicais na economia virou fenômeno eleitoralFoto: Natacha Pisarenko/AP Photo/picture alliance

O que dizem as pesquisas

Levantamentos na Argentina têm mostrado um cenário de indefinição no primeiro turno.

Uma compilação de 12 pesquisas realizadas até 11 de outubro pelo jornal argentino La Nación coloca o populista Milei aparece à frente em 11 delas, com oscilações entre 33% e 35,6%.

Já o governista Massa aparece com entre 26% e 32,2%. Bullrich, por sua vez, conta com entre 21,8% e 28,9%.

Em contraste com quase todas as pesquisas argentinas, o instituto brasileiro Atlas Intel, num levantamento divulgado na semana passada, apontou Massa em primeiro lugar. Nesse levantamento, o governista tem cerca de 30% dos votos, seguido por Milei (26%) e Bullrich (24%).

Todas as pesquisas sugerem que o pleito presidencial deve ser mesmo decidido em segundo turno, em contraste com a última eleição, na qual Alberto Fernández venceu já na primeira rodada, derrotando o então presidente Mauricio Macri, que buscava a reeleição.

E a maioria dos levantamentos sugere que um eventual segundo turno em 2023 será disputado entre Milei e Massa. Bullrich aparece com chances de passar para o segundo turno em apenas um levantamento.

No entanto, Bullrich, que tem ocupado um desconfortável terceiro lugar na corrida na maioria das pesquisas, aparece como capaz de derrotar tanto Milei quanto Massa num eventual segundo turno em pelo menos três levantamentos.

Já no confronto direto entre Milei e Massa, o governista peronista aparece por enquanto em desvantagem em praticamente todos os levantamentos.

Sergio Massa. Candidato governista tenta assegurar continuidade do peronismo no governo Foto: Tomas F. Cuesta/AP/picture alliance

Como o Brasil encara o pleito no país vizinho

A Argentina é o maior parceiro econômico do Brasil na América do Sul e é um dos principais destinos de exportações de produtos industrializados brasileiros. Os dois países também são os principais membros do Mercosul, bloco comercial sul-americano.

O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva tem evitado comentar explicitamente as eleições no país vizinho, em contraste com seu antecessor, Jair Bolsonaro, que foi explícito em seu apoio ao liberal Macri em 2019 e sua oposição a Fernández, o que gerou mal-estar diplomático.

Durante a campanha, em agosto, Lula se limitou a receber em Brasília o ministro Massa oficialmente para uma reunião, na qual foram tratados temas econômicos, mas que também foi encarada por alguns observadores como um aceno discreto de preferência pelo candidato.

Já o ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad, foi mais explícito sobre a posição brasileira. Sem endossar diretamente alguma candidatura, Haddad afirmou nesta semana que o Brasil está "preocupado" com uma possível vitória do ultradireitista Milei, que em sua campanha propôs retirar a Argentina do Mercosul.

"É natural que eu esteja [preocupado]. Uma pessoa que tem como uma bandeira romper com o Brasil, uma relação construída ao longo de séculos, preocupa. É natural isso. Preocuparia qualquer um... Porque em geral nas relações internacionais você não ideologiza a relação", disse Haddad.

Já os bolsonaristas são explícitos em seu apoio ao radical Milei. O ex-presidente Jair Bolsonaro enviou nesta semana uma mensagem em vídeo de apoio ao argentino, que reproduziu o conteúdo em suas redes sociais. "Não podemos continuar com a esquerda. É um apelo que eu faço a todos os argentinos: vamos mudar, e mudar para valer, com Milei. Compromisso meu, hein?! Vou para a tua posse", disse Bolsonaro na mensagem.

O deputado brasileiro Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente, também já realizou várias lives com o argentino. "Não só adoramos deixar os esquerdistas loucos, mas também nos une a liberdade", afirmou sobre esses encontros.

Nesta semana, Eduardo viajou para a Argentina, sob o pretexto de acompanhar o pleito presidencial em missão oficial, mas suas falas deixam claro que o objetivo é prestar apoio a Milei. Ainda nesta semana, junto com outras seis dezenas de deputados brasileiros – a maioria de extrema direita –, Eduardo assinou uma carta de apoio a Milei.