Ex-oficial da ditadura argentina é localizado em Berlim
18 de julho de 2020
Paradeiro de ex-oficial da ditadura argentina foi revelado por jornal alemão. Ele é acusado de participar do assassinato de 152 pessoas durante a "Guerra Suja". Extradição esbarra na cidadania alemã do suspeito.
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Parece um aposentado qualquer. As imagens mostram um homem idoso caminhando tranquilamente pelas ruas do bairro berlinense de Friedrichshain. Mas seu rosto muda completamente quando confrontado pelo jornalista que carrega a câmera. O idoso é o ex-oficial Luis Esteban Kyburg, de 72 anos, alvo de um mandado de prisão internacional emitido pela Argentina.
Kyburg foi o segundo comandante de uma unidade especial da Marinha argentina que se envolveu no sequestro e assassinato de 152 pessoas durante a chamada "Guerra Suja" (1976-1983) da ditatura militar do país sul-americano.
Ele foi localizado nesta semana por um jornalista do tabloide Bild, aparentemente levando uma vida discreta na capital alemã. Confrontado pelo jornalista, Kyburg respondeu: "Eu espero aqui. Um tribunal na Alemanha, não na Argentina. Eu espero. Inocente. Tranquilo", segundo imagens publicadas na sexta-feira (17/07).
Numa curiosa inversão dos casos envolvendo criminosos nazistas que fugiram para a Argentina após a Segunda Guerra Mundial, Kyburg se mudou para a Alemanha em 2013, após membros de sua antiga unidade serem condenados à prisão em Buenos Aires.
Segundo o Bild, Kyburg tem dupla cidadania: argentina e alemã. O fato de também possuir um passaporte do país europeu tem sido um entrave para que ele seja mandado de volta para a Argentina. A lei alemã não permite que cidadãos do país sejam extraditados.
Em 2013, Kyburg foi incluído em alertas de procurados pela Interpol. Dois anos depois, segundo o Bild, procuradores argentinos, que suspeitavam da presença do suspeito no país europeu, pediram a sua extradição da Alemanha. O pedido não foi apreciado por causa da cidadania alemã do suspeito
Mas a reportagem do jornal deve aumentar a pressão sobre o caso. Após a revelação do paradeiro de Kyburg, a ONG alemã Centro Europeu dos Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR) declarou que a Alemanha "não deveria ser um lugar seguro para criminosos da ditadura argentina".
"A cidadania alemã de Luis Kyburg não deve protegê-lo da acusação", afirmou o secretário-geral da ECCHR, Wolfgang Kaleck, em comunicado.
A ONG pediu ainda à promotoria local que iniciasse um processo para que Kyburg pelo menos seja julgado na Alemanha pelas acusações que pesam contra ele. De acordo com a ONG, procuradores alemães têm mantido contato com o Ministério Público argentino.
A revelação pública do paradeiro de Kyburg ocorre pouco menos de um ano depois da extradição pela França de Mario Sandoval, de 66 anos, um ex-policial argentino que viveu tranquilamente por mais de três décadas em Paris.
Acusado de crimes contra a humanidade na Guerra Suja, ele fugiu para a França em 1985 e chegou a trabalhar como professor no Instituto de Altos Estudos de América Latina da Sorbonne Nouvelle e na Universidade de Marne-la-Vallé.
Sandoval também tinha cidadania francesa. Só que a Justiça do país europeu entendeu que os crimes cometidos ocorreram antes que ele se tornasse cidadão francês.
Batizada oficialmente de "Processo de Reorganização Nacional", a ditadura militar argentina de 1976 se estendeu até 1983. Foi um dos regimes mais sanguinários instalados na América do Sul durante a Guerra Fria. Estima-se que mais de 30 mil pessoas tenham sido assassinadas no período. Outras violações de direitos humanos incluíram uso da tortura em larga escala, estupros e até mesmo o sequestro sistemático de crianças.
Regime militar que sufocou a democracia se estendeu por 21 anos. Período foi marcado por perseguições, tortura, censura, crescimento e derrocada econômica.
Foto: Arquivo Nacional
A perseguição política
A perseguição de adversários se concentrou nos meses após o golpe de 1964 e entre o final da década de 60 e início dos anos 70. Mais de 5 mil pessoas foram alvo de punições como demissões, cassações e suspensão de direitos políticos. Ao todo, 166 deputados foram cassados. O regime também perseguiu membros em suas fileiras. Pelo menos 6.951 militares foram presos, desligados e presos.
Foto: Arquivo Nacional
Assassinatos e desaparecimentos
Assim como a perseguição política, os assassinatos de opositores promovidos pelo regime se concentraram em algumas fases da ditadura. Mas todos os generais-presidentes foram tolerantes com a prática. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou a responsabilidade do regime militar pela morte de 224 pessoas e pelo desaparecimento de 210 – 228 delas morreram durante o governo Médici (1969-1974).
Foto: Arquivo Nacional
Tortura
Na ditadura, a tortura virou uma prática de Estado. Já no governo Castelo Branco (1964-1967) foram apresentadas 363 denúncias de tortura. Na fase de Médici (1969-1974), seriam mais de 3.500. O relatório "Brasil: Nunca Mais" lista 283 formas de tortura aplicadas pelo regime, como afogamentos, choques elétricos e o pau de arara. Ao longo de 21 anos, houve mais de 6 mil denúncias de tortura.
Foto: Arquivo Nacional
A luta armada
Ao dar o golpe, os militares citaram a corrupção e o esquerdismo do governo Jango. A luta armada, às vezes apontada como razão de ser da ditadura, nem foi mencionada. Só em 1966 ocorreram as primeiras ações relevantes de grupos de esquerda, que cometeriam atentados e assaltos com o objetivo de promover uma revolução. Em 1974, todos já haviam sido aniquilados, mas a ditadura duraria mais uma década
Foto: Arquivo Nacional
Os atos institucionais
O regime militar recorreu a uma série de decretos chamados atos institucionais para manter seu poder. Entre 1964 e 1969 foram promulgados 17 atos, que estavam acima até da Constituição. Alguns promoveram a cassação de adversários (AI-1) e a extinção dos partidos políticos existentes (AI-2). O mais duro deles, o AI-5, instituiu em 1968 a censura prévia na imprensa e a suspensão do "habeas corpus".
Foto: Arquivo Nacional
A censura
Boa parte da imprensa apoiou o golpe, mas vários jornais passaram a criticar o regime, alguns mais cedo, outros mais tarde. Com o AI-5, passou a vigorar uma censura prévia em vários meios de comunicação. O regime censurava até más notícias, promovendo uma imagem fictícia da realidade do país. Epidemias, desastres e atentados eram temas vetados. Músicas, filmes e novelas também foram censurados.
Foto: Arquivo Nacional
Colaboração com outras ditaduras
Junto com os regimes da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, a ditadura brasileira integrou a Operação Condor, uma aliança para perseguir opositores no Cone Sul. O regime também ajudou a treinar oficiais chilenos em técnicas de tortura. Um dos casos mais notórios de colaboração foi o sequestro em 1978 de dois ativistas uruguaios em Porto Alegre, que foram entregues ao país vizinho.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
O milagre econômico...
Após três anos de ajustes, os militares promoveram a partir de 1967 investimentos e oferta de crédito. A fórmula deu resultados. Entre 1967 e 1973, a expansão do PIB brasileiro foi de 10,2% ao ano. O país passou a ser a décima economia do mundo. O crescimento aumentou a popularidade do regime durante a fase mais repressiva da ditadura. Mas o "milagre brasileiro" duraria pouco.
Foto: Arquivo Nacional
... e a derrocada econômica
A conta do "milagre" chegou após os dois choques do petróleo e uma série de decisões desastradas para manter a economia aquecida. Ao fim da ditadura, o país acumulava dívida externa 30 vezes maior que a de 1964 e inflação de 225,9% ao ano. Quase 50% da população estava abaixo da linha de pobreza. Os militares pegaram um país com graves problemas econômicos e entregaram um quebrado.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Corrupção
A censura e a falta de transparência favoreceram a corrupção. O período foi marcado por vários casos, como o Coroa-Brastel, Delfin, Lutfalla e a explosão de gastos em obras. O regime promoveu e protegeu figuras como Paulo Maluf e Antônio Carlos Magalhães, que já nos anos 70 eram suspeitos em casos de corrupção. Também abafou casos, como a compra superfaturada de fragatas do Reno Unido nos anos 70.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Grandes obras
A ditadura promoveu obras faraônicas, divulgadas com propaganda ufanista, como Itaipu e a ponte Rio-Niterói. Algumas foram marcadas por desperdícios e erros, como a Transamazônica e as usinas de Angra. Em 1969, o regime criou uma reserva de mercado para as empreiteiras nacionais ao proibir a atuação de estrangeiras. É nessa época que empresas como a Odebrecht passam a dominar as obras no país.
Foto: Arquivo Nacional
Anistia e falta de punições
Em 1979, seis anos antes do fim da ditadura, foi promulgada a Lei da Anistia, perdoando crimes cometidos por motivação política. Mas ela tinha mão dupla: garantiu também a impunidade para agentes responsáveis por mortes e torturas. No Chile e na Argentina, dezenas de agentes foram condenados por violações de direitos humanos após a volta da democracia. No Brasil, ninguém foi punido.