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CatástrofeBrasil

Arte e entretenimento trazem alento em abrigos no RS

29 de maio de 2024

Abrigos oferecem música, cinema e diversas oficinas para ajudar quem está fora de suas casas a enfrentar momento de incerteza. Atenção especial é dada às crianças.

Pessoas sentadas assistem a filme em abrigo
Abrigo da PUCRS oferece sessão de cinema todas as noitesFoto: Ricardo Barberena

Um mês após os temporais que causaram a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul, cerca de 50 mil pessoas ainda estão desabrigadas no estado. Para trazer um pouco de conforto e alegria à essa população, diversos abrigos têm organizado atividades recreativas, como sessões de cinema e oficinas de variados temas.

A Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que receberam 250 e 600 desabrigados respectivamente, utilizaram sua infraestrutura para montar espaços infantis, bibliotecas e áreas para a prática de esportes. A ajuda de professores e alunos voluntários possibilitou ainda a oferta de oficinas e atividades variadas.

"Conseguimos desenvolver uma rotina aqui na PUCRS, tem o horário da educação física, das oficinas, das refeições. No final de semana, sempre trazemos uma atração, show de chorinho, show de rock, orquestra", explica o coordenador do abrigo Ricardo Barberena. As atividades no local incluem oficinas de relatos biográficos, de expressão, de contação de história, de jogos e de pintura.

"A intenção é que a arte seja um pouco de respiro, uma possibilidade de descompressão. Afinal de contas, a arte existe para que a realidade não nos destrua. Eu realmente acredito que a cultura dá um pouco de sentido dentro do absurdo que vivemos. Ver eles sorrindo quanto está passando um filme, na roda de samba, vale muito, é uma pequena fuga, um suspiro de felicidade", diz Barberena.

Até orquestra se apresentou em abrigos montados para as vítimas das enchentes no RSFoto: Ricardo Barberena

Usar o entretenimento para espairecer é o que tem feito Silviano José Mendes da Silva, de 59 anos, morador do bairro inundado Humaitá, em Porto Alegre, que está abrigado na PUCRS junto da esposa, filho, e mãe idosa. No abrigo, ele encontrou companhia para jogar xadrez, uma das atividades de que mais gosta.

"Minha família não gosta de nenhuma espécie de jogo, sempre joguei xadrez sozinho no celular. Aqui tem uma turma que joga sempre, já estou convocado para jogar de tarde. Aquela senhora ali é fanática. Ela passa a tarde toda jogando xadrez, às vezes ela perde, mas é muito boa", relata Silva, apontando para outra abrigada no ginásio da universidade. "É bom para preencher o tempo, se não a gente enlouquece aqui. Nem tenho olhado mais o jornal, nem quero saber para não ficar mais triste."

A sétima arte

Todas as noites às 20h, as luzes se apagam e um telão se acende no ginásio da PUCRS, em frente aos colchões enfileirados no chão. "É um momento que todo mundo se senta, vai se acalmando, e se preparando para a noite. Temos sessão de cinema todas as noites", relata o voluntário Gabriel Sonntag, que coordena a exibição dos filmes.

A escolha dos filmes leva em conta a grande presença de crianças no abrigo. Segundo Sonntag, são exibidos filmes com indicação livre que tratem de união, de temáticas familiares, de coletividade, e que tenham um tom leve. Entre os filmes exibidos estão Shrek, Happy Feet, Os Pinguins de Madagascar, Os Incríveis e Homem Aranha.

Abrigos dão atenção especial às criançasFoto: Guilherme Freling/UFRGS

Mesmo que a escolha dos filmes tenha um maior apelo ao público infantil, o voluntário relata que o cinema atrai também muitos adultos. "Muitos adultos nos procuram também para dar dicas de filmes", conta. "Temos um equipamento de som bem imersivo, fazemos uma pipoquinha, e quando os olhos das crianças brilham, dá aquela sensação de estar fazendo algo extraordinário."

Tiffany, de 12 anos, conta que A Fantástica Fábrica de Chocolate foi o seu filme favorito. "Nunca tinha visto, achei muito legal porque tinha coisas feitas de doce, chocolate, e o Willy Wonka é muito tri. No final nos deram docinhos, foi legal."

A universalidade da música

A música também é uma das atividades presentes em vários abrigos. Grupos musicais dos mais diversos estilos têm se apresentado voluntariamente nesses locais.

"A música é uma das artes mais importantes e essenciais para a humanidade, através dela é possível falar de amor, de sonhos, despertar sentimentos e emoções", diz Antônia Comiotto Aquino, 1ª prenda juvenil do centro de tradições gaúchas 35 CTG. A jovem faz parte da escola Fábrica de Gaiteiros e se apresentou junto com outros músicos em três abrigos da capital.

Grupos tradicionais gaúchos também se apresentam em abrigosFoto: CTG 35

Luiz Carlos Almeida de Santos, de 75 anos, até soltou a voz quando o grupo de samba tocou no abrigo da PUCRS. "Um pessoal aqui, as enfermeiras, sabiam que eu gosto de cantar, já tinha cantado para eles. Então me deram essa brecha." No repertório do aposentado – que está desabrigado há mais de 20 dias – Jorge Ben Jor e Paulinho da Viola. "Ben Jor é meu cantor preferido, sou até parecido com ele na fisionomia. Tive essa felicidade de poder cantar, e o pessoal adorou, disse que tenho jeito", relata, revelando já ter tido o sonho de fazer um curso de canto e ser cantor.

Atenção especial aos pequenos

Se alguns adultos apresentam desinteresse nas atividades que têm ocorrido nos abrigos, o mesmo não pode ser dito do público infantil. Cheias de energia, as crianças têm participado de atividades esportivas, apresentações lúdicas e diversos tipos de recreação. Os abrigos melhor estruturados conseguiram montar brinquedotecas, e alguns até receberam brinquedos infláveis, palhaços, e pintura lúdica de rosto para a diversão dos pequenos.

No abrigo da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança da UFRGS, o objetivo é aliar brincadeiras com o acompanhamento do desenvolvimento infantil, conta a coordenadora voluntária Nadia Valentini. "Nosso foco está em potencializar o desenvolvimento dessas crianças levando em conta a condição de grande estresse que estão vivendo", afirma a pesquisadora e especialista em desenvolvimento infantil.

O espaço abriga 145 crianças de 3 meses a 13 anos. "Eu trouxe os brinquedos que utilizo no meu laboratório, onde avalio desenvolvimento cognitivo, de linguagem, e motor. A comunidade nos enviou muitos brinquedos e jogos, temos brinquedos até estocados e cada criança ganhou um bichinho de pelúcia para dormir."

Espaço exclusivo para crianças foi montado no abrigo da UFRGSFoto: Nadia Cristina Valentini

Os voluntários desses espaços infantis incluem alunos e professores de áreas chave como enfermagem, psicologia, serviço social, pedagogia, educação física, fisioterapia e dança. Eles também fornecem orientações aos pais. "Queremos criar oportunidades para as famílias terem acesso à informação de como ajudar e estimular os seus próprios filhos".

Inspirações profissionais

Algumas iniciativas buscaram também despertar potencialidades profissionais e pessoais. Um exemplo disso foi o Abrigo Summit, evento de palestras variadas organizado no abrigo montado no Clube dos Caixeiros Viajantes. "Queríamos proporcionar algo que ajudasse a melhorar a vida das pessoas no retorno, algo que ajudasse a entreter aqui, mas que também fosse útil", conta um dos idealizadores da atividade, o publicitário e voluntário sócio do clube Angelo de Souza Augusto.

A ideia era fazer um evento que concentrasse as ações esporádicas que já vinham ocorrendo, e tivesse um caráter ágil e de troca e conversa entre os participantes. "Trouxemos o modelo de Abrigo Summit, de certa forma, até com bom humor, e focamos naquele público específico, não era para ser uma coisa mirabolante, mas coisas que pudessem ser aplicadas nas suas vidas."

O evento incluiu palestras sobre gestão financeira, doenças relacionadas à enchente, empreendedorismo, comunicação não violenta e construção de bons relacionamentos e criatividade.

Já no abrigo da PUCRS, o jovem Lucas Gabriel Pires Souza, de 17 anos, está tendo a oportunidade de fazer um curso de marcenaria. Alegre, ele conta que nos primeiros dias aprendeu a utilizar os instrumentos. Não é difícil, já sei usar a lixadeira, a máquina de corte, manusear as tábuas, usar parafusadeira e montar coisas. Em um dia batemos um recorde, montamos 110 rodos. Tem um monte de gente encomendando rodos. Na próxima semana, vamos aprender a fazer camas e depois armários."

O morador do bairro Humaitá que teve a casa totalmente alagada, já enxerga uma chance para o futuro. "É muito bom, dá para abrir um negócio de móveis", conta Souza.

Crônica de uma catástrofe anunciada

14:48

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