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Arte para exorcizar os demônios da fuga pelo Mediterrâneo

Wolfgang Dick ca
13 de novembro de 2018

Projeto de ONG humanitária permite a refugiados processar artisticamente suas experiências na fuga de barco rumo à Europa. Muitas das histórias relatadas são assustadoras.

Foto de um navio à deriva em gesso, que faz parte do projeto "Homem como carga marítima"
"Navio à deriva" faz parte do projeto "Homem como carga marítima"Foto: DW/W. Dick

Nos botes plásticos e de madeira, os gritos são interrompidos. Mulheres e crianças rezam. Os homens se calam ou falam mais uma vez com parentes pelos celulares porque temem que a embarcação vire a qualquer momento. 

Nos barcos de madeira maiores, os refugiados são "empilhados" – em cinco camadas, uma em cima da outra. Os coiotes querem transportar o maior número de pessoas possível. Quanto mais gente, maior o lucro.

Por esse horror, cada refugiado paga em média entre 1.500 a 4.000 euros. A soma é recolhida por até 40 membros da família e vizinhos, na esperança de permitir a "felicidade na Europa" a pelo menos uma pessoa do entorno.

O iraquiano Thamer (22) e o sírio Khabat (33), sua esposa e dois filhos conseguiram realmente chegar à Europa – numa odisseia que passou por sete países. Na Alemanha, eles tiveram sorte. Depois de permanecerem num abrigo de refugiados, foram enviados para a associação caritativa Malteser.

Nessa organização católica de ajuda humanitária em Ahaus, na fronteira entre a Alemanha e a Holanda, os refugiados podem expressar suas vivências de forma artística, chamando a atenção para sua situação de necessidade.

O trabalho e a tristeza

No espaço artístico Kunsthaus Ahaus, dezenas de paletes de madeira estão espalhados pelo chão – à semelhança do que ocorre nos porões dos navios de carga. Esses paletes são empilhados por Thamer e Khabat num formato oval, em várias camadas.

No meio da instalação, eles colocam de forma simbólica lápides de gesso e cruzes para todas as pessoas que não sobreviveram à fuga de barco pelo Mediterrâneo. O pai de Thamer é um dos que morreram. No entanto, a aparência de Thamer é quase de alívio.

A gestora do projeto, Ines Ambaum, explica: "Thamer ainda é jovem e não quer perder sua imagem. Ele quer provar aos mais velhos, especialmente aos muçulmanos, que o irritam constantemente por ele ser curdo, que é um homem durão".

Muitos refugiados mostram "várias faces", diz a gestora, e cada um tem seus motivos pessoais. Mas, a cada dia, as mulheres e homens que trabalham na obra de arte se abrem um pouco mais com a artista e, a cada parafuso, as memórias da fuga pelo Mediterrâneo voltam a perfurar suas almas.

Paletes de madeira lembram fuga através do MediterrâneoFoto: DW/W. Dick

Pesadelos absolutos

As experiências relatadas são assustadoras. Homens de Eritreia, por exemplo, trouxeram consigo as irmãs. Mas, para protegê-las, disseram que eram suas esposas, o que mostrou ser um grande erro. Os atravessadores suspeitaram que a declaração fosse falsa e exigiram que os eritreus fizessem sexo com suas supostas mulheres para poderem entrar nos barcos de fuga.

Como eles obviamente se recusaram, os coiotes decidiram violar, eles mesmos, as mulheres. Muitas só descobriram na Alemanha que estavam grávidas, e não foram poucas as que se suicidaram.

"Quando se imagina que pessoas que passaram por tal experiência são atacadas na Alemanha por pessoas xenófobas e perseguidos em zonas de pedestres, parece um segundo estupro", comenta Ambaum.

À instalação no espaço de exposições de Ahaus, eles deram o título Homem como carga marítima. Todos os visitantes da mostra devem perceber que ali se encontra algo errado. Claro, pessoas não são cargas. Mas a realidade da África do Norte é diferente. Refugiados são tratados como mercadoria. Eventualmente, derramam-se lágrimas. Então todo mundo se silencia.

De artista a amiga

"Chanzla" – "chanceler" – é como Thamer chama a artista atualmente, abraçando-a alegremente ao redor do pescoço. Ele é grato por ela tê-lo ouvido tantas vezes. Por que não abraçá-la por gratidão? "Ines também humana", disse Thamer, num alemão ainda um pouco falho, que muitas vezes ele domina de forma incrivelmente perfeita, após um ano de curso de língua.

Abraçar uma mulher com quem não se é casado é um ato estritamente proibido e absolutamente pecaminoso no Iraque, seu país natal. "Esse é exatamente o problema", afirma a artista. "Antes do casamento, os muçulmanos são proibidos de fazer sexo. Eles não aprendem nem mesmo a se satisfazer para aliviar a pressão."

Ela contou que, recentemente, um refugiado veio até ela queixando-se de forte dor no abdômen e pedindo que ela ligasse para um médico. Este veio e constatou que o refugiado tinha apenas uma ereção matutina. O homem não conhecia isso. Ninguém havia dito nada sobre isso para ele. É simplesmente proibido falar sobre o assunto.

Khabat, da Síria, e Thamer, do Iraque, trabalham com artista Ines Ambaum Foto: DW/W. Dick

Ninguém escuta

"O trabalho com os refugiados mudou toda a minha vida", diz Ambaum. Se antes ela achava emocionante voar com uma companhia aérea de baixo custo apenas para o café da manhã em Paris, hoje ela considera isso inconcebível. "Tais futilidades somem quando se acompanha a jornada dos migrantes."

Além disso, há o comportamento de muitos alemães, que se irritam com qualquer mesquinharia. "Muitos problemas surgem entre alemães e estrangeiros porque aqui as pessoas se comparam constantemente umas com as outras."

Por exemplo, alemães observam os telefones celulares dos refugiados – e ai se um deles tiver um mais moderno. "Todos nós pagamos isso, com dinheiro de nossos impostos", reclamaram alguns de seus amigos, ignorando o fato de que um telefone celular é a única ligação dos migrantes com suas famílias em seu país de origem.

Amigos como esses não fazem mais parte do entorno de Ambaum. Ela se afastou deles, o que não foi uma tarefa difícil, diz. Supostos amigos a excluíram de um grupo de vizinhança do WhatsApp. O motivo: a artista convidou 20 refugiados para sua festa de aniversário. Logo Ambaum teve de escutar: "Então vá logo de vez para os canacos."

"Muitas vezes choro sozinha, deitada à noite na cama", confessou, explicando que lhe dá esperança o fato de vivenciar diretamente como os refugiados, de quem ela cuidou, se integraram na Alemanha. "98% são totalmente integráveis, mas ninguém escreve sobre isso", reclama.

"Isso soa positivo demais para a imprensa e, aparentemente, não se encaixa no zeitgeist, mas é verdade, eu vivencio isso todos os dias." O sírio Khabat é uma prova disso. Depois de dois anos e meio, ele começou a trabalhar como motorista para a Malteser, que o ajudou. Com uma carteira de habilitação alemã, com prova teórica feita em árabe.

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