As crianças e as "palavras arbitrárias"
5 de outubro de 2005
Coche, araba, auto – três denominações para um mesmo objeto de madeira sobre rodas: um carrinho de brinquedo que a pequena Jelya, filha de pai turco e mãe espanhola, empurra pela sala da casa. Quando alguém pergunta para a menina com o que ela está brincando, a reposta vem de acordo com o interlocutor: pode ser em alemão, em espanhol ou em turco.
"Percebemos que, com dois anos e meio, nossa filha já consegue ir e vir entre as duas línguas. Comigo ela fala turco e se, logo em seguida, a mãe pergunta alguma coisa, ela responde em espanhol", conta entusiasmado o pai Cahit Basar.
Coerência é essencial
A menina só se sente um pouco atrapalhada quando sua tia turca começa, por exemplo, a falar alemão. Ou quando um alemão amigo da família começa a falar espanhol. Ou até quando ouve da própria mãe, a espanhola Natividad, uma palavra ou outra em turco. "Outro dia eu disse alguma coisa e ela me corrigiu. Não, mamãe, não é su, é agua. Ela quis me dizer que eu não deveria falar turco, mas sim espanhol", conta Natividad.
O comentário da menina de dois anos tem realmente suas razões. Pois uma das premissas da educação bilíngüe é que tanto pais quanto avós ou amigos mantenham a coerência ao falar com as crianças. Para que estas não confundam os idiomas. No caso de Jelya, por exemplo, é importante que o pai continue falando turco, a mãe espanhol e os amigos alemães da família o idioma do país – a Alemanha – onde vivem.
Idioma da interação
Os ouvidos de Jelya estão, na verdade, mais acostumados a ouvir turco e espanhol do que alemão, pois ela passa boa parte do tempo na casa dos avós, que cuidam dela quando os pais estão trabalhando. Para a fonoaudióloga Nicolette Bourtscheidt, no entanto, ela não terá dificuldade alguma em aprender rapidamente o alemão.
No jardim-de-infância esta será, afinal, a língua que ela irá usar para se comunicar com os coleguinhas. É provável que o alemão, que a menina já domina passivamente – ouve e compreende – passe a ser usado dentro em breve também ativamente.
"As crianças, nos jardins-de-infância, têm às vezes um pouquinho de dificuldade no começo. Nos primeiros dois, três meses, elas geralmente observam o que se fala e, de repente, começam a ir e vir entre as duas línguas maternas e o alemão, que é, afinal, o idioma de interação com as outras crianças", observa a fonoaudióloga Bourtscheidt.
Competência em vários universos culturais
A educação bilíngüe ou trilíngüe, condenada por várias décadas como um "perigo" para o desenvolvimento da criança, é hoje vista como uma vantagem para o adulto, que irá dominar não apenas dois idiomas, mas terá também competência para se movimentar em universos culturais distintos.
"Até os anos 60", relembra o semanário alemão Die Zeit, "acreditava-se que crianças bilíngües tinham seu desenvolvimento retardado em relação a outras da mesma idade. A idéia era de que aprender dois idiomas significava uma dispersão de recursos cerebrais e que, acima de tudo, essas crianças apresentavam deficiências de desenvolvimento não só no aprendizado da língua, mas em outros aspectos também."
Máxima de Saussure
O problema é que a maioria das pesquisas realizadas com crianças bilíngües à época foram feitas com filhos de imigrantes nos Estados Unidos – uma seleção que não continha amostras de vários segmentos da sociedade.
Mais tarde, o teuto-americano Werner Leopold, considerado um dos pioneiros dos estudos sobre educação bilíngüe, viria a observar que as crianças que crescem falando dois idiomas tendem a manter determinada distância da língua em si. Ou das línguas. "Sozinhas, elas chegam à constatação básica de Ferdinand de Saussure: as palavras são arbitrárias", lembra o Die Zeit.
Décadas mais tarde, os especialistas passaram a apontar a educação bilíngüe como um fato que pode abrir fronteiras no desenvolvimento cognitivo e social da criança. Não sendo, porém, um ideal a ser seguido por todos. O perigo, alertam, é que a pessoa adulta se torne, ao invés de bilíngüe, alguém que não domina nenhum idioma com perfeição.
Tradutores mirins
"No caso de uma criança que cresce com três idiomas, os pais devem chegar a um consenso em casa sobre o que vão falar com ela. Para quando chegar a hora, na escolinha, de aprender um terceiro idioma, já existir uma clareza quanto ao que é falado na família. Quando a criança estiver sozinha com o pai ou a mãe, por exemplo, ela deve falar apenas a língua deste ou desta", recomenda a fonoaudióloga Bourtscheidt.
Com apenas dois anos e meio, a pequena Jelya não domina ainda, obviamente, as três línguas (turco, espanhol e alemão) perfeitamente. Mas os especialistas não duvidam de que isso deve acontecer em breve. O que, certamente, vai colocar um fim na ciranda de traduções na família.
"Pois nós dois temos apenas um conhecimento básico da língua do outro. Minha mulher entende turco, mas não fala bem. A mesma coisa acontece comigo em relação ao espanhol. Ou seja, esperamos ter brevemente uma tradutora dentro de casa", brinca Cahit Basar, o pai de Jelya.