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As marcas deixadas pelo "Estado Islâmico" no Iraque

Florian Neuhof, de Mossul (jps)21 de setembro de 2016

Recentemente libertada, a cidade de Qayyarah simboliza os horrores causados pelos jihadistas. Seus habitantes agora tentam lidar com as feridas deixadas pelo grupo terrorista, que alimentam o ódio sectário.

Poços de petróleo queimados pelos jihadistas: a fumaça está afetando a saúde da população
Poços de petróleo queimados pelos jihadistas: a fumaça está afetando a saúde da populaçãoFoto: DW/F. Neuhof

Foi há dois anos que as mudanças começaram a ser notadas. Primeiro, o policial da casa da frente fugiu. Depois, chegaram as novas "autoridades". Não demorou para que Hassan, um homem amigável de 49 anos, percebesse que algo sinistro estava acontecendo em Qayyarah, uma cidade empoeirada às margens do rio Tigre: de sua casa, ele passou a ver jihadistas levando homens para o quintal e os espancando; prisioneiros sendo arrastados para dentro, e seus corpos sendo descartados alguns dias depois. Era o Estado Islâmico (EI), que, após derrotar o Exército em Mossul, havia invadido a província de Nínive, no noroeste do Iraque, e ocupado Qayyarah.

"Os corpos eram armazenados em um congelador", conta Hassan, enquanto aponta para o sombrio interior da casa, onde colchões com manchas de sangue se amontoam pelo chão, e placas de metal vedam as janelas de quartos convertidos em celas de prisão.

Um alto membro do EI chamado "Abu Najid" viveu aqui até que Forças Especiais do Iraque expulsaram o grupo terrorista da cidade durante uma batalha de dois dias de duração no final de agosto. Conhecido como o "juiz sangrento" entre os vizinhos, ele decidia o destino daqueles que caíam nas mãos do EI.

"Juiz sangrento".

Após ser torturado até confessarem, os prisioneiros eram frequentemente assassinados por enforcamento por meio de um gancho instalado no teto, morrendo quando uma cadeira sob seus pés era chutada, conta um oficial do Exército iraquiano, enquanto observa a sala de execução onde ocorriam esses assassinatos.

Abu Najid, o juiz sangrento, fez uso do seu status proeminente dentro do EI para manter quatro mulheres da minoria yazidi como escravas sexuais. Elas, assim como milhares de desafortunadas yazidis, foram distribuídas entre os terroristas quando capturadas durante a ofensiva do EI na região de Sinjar, em agosto de 2014.

Algumas vezes, as mulheres recebiam permissão para sair sem guarda – e usavam essa oportunidade para pedir ajuda. "As yazidis pediam aos vizinhos que eles enviassem mensagens para seus parentes. Quando uma patrulha do EI flagrava esses encontros com habitantes locais, o juiz as espancava", diz Shema, a filha de oito anos de Hassan, que conversava frequentemente com as mulheres.

Shema (à direita) e sua irmã na casa que fica na mesma rua onde estava localizada uma das prisões do EIFoto: DW/F. Neuhof

Abu Najid levou consigo as quatro mulheres – que tinham todas menos de 30 anos, segundo os vizinhos – quando fugiu de Qayyarah. Alguns vestidos descartados no gramado do lado de fora da casa servem como um lembrete do suplício delas.

Reino de terror

O EI instalou cinco prisões cruéis desse tipo em Qayyarah, uma cidade de cerca de 20 mil habitantes. O reino de terror passou a permear a vida cotidiana sob a supervisão da Hisbah, a polícia moral do EI, responsável por aplicar a interpretação islâmica medieval do grupo.

"Se você fosse ao mercado, você toparia com o Daesh e a Hisbah. Eles verificavam barbas curtas, calças e até um corte de cabelo considerado errado", conta Ahmed, um professor de inglês de 42 anos, usando o acrônimo árabe para o EI.

Soldados iraquianos seguram vestidos deixados para trás por mulheres yazidis escravizadas pelo EIFoto: DW/F. Neuhof

O extremismo dos terroristas alienou a população local, e uma oposição começou a se formar mesmo com a ameaça de retaliações severas contra aqueles que fossem flagrados resistindo. Quando as forças especiais iraquianas se aproximaram de Qayyarah, um pequeno grupo de homens pegou em armas e resolveu enfrentar os opressores, segundo o general Najim al-Jabouri, responsável pelas operações militares na área de Nínive.

"Nós contatamos algumas pessoas no interior de Qayyarah pouco antes da batalha. Quando nossas tropas se aproximaram, eles se rebelaram e combateram o EI no interior da cidade. Isso nos ajudou a tomar Qayyarah sem causar baixas entre os civis", afirma o general à DW, a partir do seu quartel-general na cidade vizinha de Makhmour.

Governo imperfeito

Em toda a Qayyarah, o alívio de se ver livre do EI é visível. A população sunita do Iraque tinha queixas contra o governo liderado por xiitas e suas forcas de segurança – e esse ressentimento foi explorado pelos terroristas quando eles tomaram mais de um terço do país. Mas na visão dos habitantes de Qayyarah – que são sunitas –, os horrores dos dois últimos anos desqualificaram o EI como uma alternativa viável ao governo imperfeito de Bagdá.

"Todo mundo sabe o que é o Daesh. Se você tinha alguma vontade de se juntar ao Daesh, você pode apagar essa ideia da sua cabeça", diz Ahmed, que perdeu o emprego quando o EI fechou as escolas locais.

Para aqueles que precisam ser lembrados da miséria trazida pelo EI a Qayyarah, colunas de fumaça que continuam a sair dos poços de petróleo incendiados pelos terroristas durante sua retirada servem como lembrete. O nevoeiro negro envolveu vizinhanças inteiras enquanto engenheiros lutam para conter as chamas semanas após a libertação da cidade. A fumaça está afetando a saúde da população, e os moradores reclamam de dificuldades para respirar e de reações alérgicas.

Marcados pela sua experiência com EI, os habitantes se mostram simpáticos com as unidades do Exército que defendem Qayyarah contra a ameaça de uma volta do grupo terrorista. "O Exército iraquiano é o nosso exército", diz Ali Mohammed Abdullah, um funcionário público aposentado.

Exército iraquiano procura ex-colaboradores do EIFoto: DW/F. Neuhof

Isso é um bom presságio para as forças do governo e o futuro do Iraque. Qayyarah fica a apenas 60 quilômetros de Mossul, o último refúgio do EI no Iraque e segunda maior cidade do país.

Mossul é uma cidade sunita, e uma população hostil poderia comprometer uma ofensiva das forças de segurança no bastião do EI, afirma Jubouri. Para ele, se as diferenças sectárias entre os sunitas e xiitas não forem contornadas, o futuro do país continuará sombrio: "Nós precisamos de reconciliação no Iraque." Mas reconciliação não equivale à leniência com aqueles que se juntaram ao EI.

Semanas após a retomada da cidade, alguns homens ainda estão sendo detidos nas ruas e em prédios e mantidos sob a guarda das Forças de Segurança para a identificação de possíveis ex-colaboradores. Identidades são verificadas, e tribunais especiais são instalados para determinar o destino dos acusados de se juntarem aos terroristas.

"Algumas vezes os moradores de Qayyarah dizem que um sujeito é bom – e as forças de segurança o deixam em paz. Do contrário, ele é levado", afirma Ahmed, enquanto é submetido a uma triagem na rua principal da cidade.

Ele e outros homens no grupo estão amargurados com aqueles que entregaram seus vizinhos ao ajudar o EI. Após quase conseguir rachar o país ao alimentar as chamas do ódio sectário, o grupo terrorista deixa agora uma marca de comunidades partidas nas terras sunitas do Iraque.

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