Ascensão do EI garante sobrevivência política de Assad
Kersten Knipp (fc)9 de março de 2015
Após quatro anos de uma guerra civil que já custou 220 mil vidas, ditador sírio passa para segundo plano e é visto até como pilar da estabilidade regional diante das atrocidades cometidas pelo "Estado Islâmico".
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Foi por volta de março de 2011 que começaram a surgir pichações nos muros e paredes da cidade de Daraa, no sul da Síria, com dizeres pedindo a queda do regime. Não demorou até que os responsáveis, um grupo de estudantes, fossem presos – no que se tornaria a faísca para o que é tido como o início da guerra civil no país.
As prisões fizeram com que moradores da cidade saíssem às ruas para protestar. As forças de segurança do governo abriram fogo, aumentado a revolta da população e dando início a uma espiral de violência que, ao longo de quase quatro anos, custou a vida de cerca de 220 mil pessoas. Mais de 4 milhões deixaram o país, em fuga da violência.
Hoje, os sírios não fogem somente da violência do regime. Eles também tentam se manter seguros perante as atrocidades de grupos jihadistas como a Frente al-Nusra e, principalmente, o "Estado Islâmico" (EI), que é impiedoso contra os que chama de "incrédulos".
Recuperando a legimidade
O cientista político Nadim Shehadi, do instituto britânico Chattham House, diz que o presidente Bashar al-Assad tem uma parcela de responsabilidade na expansão dos jihadistas pela Síria e pelo vizinho Iraque. Segundo ele, foi a forma que o ditador encontrou para desviar o foco de seu regime.
"Esse procedimento faz parte do repertório padrão de ditadores. As prisões são abertas, e os delinquentes e criminosos são soltos. Assim, semeia-se o caos para, em seguida, combatê-lo e recuperar a legitimidade", diz Shehadi.
De fato, o olhar da comunidade internacional sobre a Síria mudou. Se nos primeiros anos da guerra destacavam-se as atrocidades do regime de Assad, nos últimos meses as menções à Síria estão quase sempre relacionadas ao "Estado Islâmico".
Decapitações, um piloto queimado vivo, pessoas lançadas do alto de prédios: com uma violência desenfreada, o EI aterroriza da mesma forma muçulmanos e não muçulmanos. E, quando proclamou seu califado em meados do ano passado, a organização terrorista deixou claro que sua sede de poder não tem limites.
Por meio de atentados em várias partes do mundo, os jihadistas não deixaram dúvida que dispõem de uma rede de simpatizantes e potenciais apoiadores prontos para atacar a qualquer lugar e momento.
Comunidade internacional sob pressão
Assim, o EI colocou a comunidade internacional sob pressão. Uma coalizão liderada pelos EUA assumiu a luta contra os jihadistas. No momento, não há outra solução, afirma o cientista político Barah Mikaïl, do instituto de pesquisa espanhol Fride, mas será preciso mais do que ações militares para resolver o problema a longo prazo. "Só que não há progressos no aspecto político, pois no momento parece ser impossível negociar com o EI", opina Mikaïl.
"Estado Islâmico" tenta apagar história
Militantes do EI estão destruindo artefatos culturais de milhares de anos no Iraque. O estrago foi condenado mundo afora e fez o Iraque pedir ajuda internacional.
Foto: Mohammad Kazemian
Acabando com o patrimônio
Militantes do "Estado Islâmico" (EI) saquearam e destruíram estátuas em museus de Mossul, no norte do Iraque. Acredita-se que as relíquias pertenciam à antiga civilização mesopotâmica. Os jihadistas, que tomaram grande parte do Iraque e da Síria, afirmam que sua interpretação do islã exige que as estátuas e artefatos culturais sejam destruídos. Muitos estudiosos do islã condenam a ação do grupo.
Estas são as ruínas de Hatra, construída há 2 mil anos pelo Império Selêucida, que controlava grande parte do mundo antigo. Segundo relatos, militantes do EI trouxeram escavadeiras para destruir a cidade. "A luta deles é por identidade, querem destruir a região, principalmente o Iraque, e seus patrimônios da humanidade", disse o ministro do Turismo do Iraque, Adel Shirshab.
Os membros do grupo militante também destruíram parte de Nínive, antiga cidade no norte do Iraque, considerada o berço da civilização por muitos arqueólogos ocidentais. "Já era esperado que o EI a destruísse", disse o ministro do Turismo iraquiano aos jornalistas. A ONU classificou a destruição de "crime de guerra".
"O céu não está nas mãos dos iraquianos. Por isso, a comunidade internacional tem que tomar uma atitude", disse o ministro do Turismo do Iraque ao pedir ataques aéreos contra os extremistas do EI. Bagdá afirmou que os militantes do EI estão desafiando "a vontade do mundo e os sentimentos de humanidade".
Os militantes do EI afirmam que as esculturas antigas entram em contradição com sua interpretação radical dos princípios do islã, que proíbem a adoração de estátuas. E quando os jihadistas não as estão destruindo, estão lucrando com elas. Especialistas afirmam que o grupo está faturando no mercado internacional com a venda de estátuas menores, enquanto as maiores são destruídas.
Estudiosos costumam comparar a destruição do patrimônio cultural por parte do EI à demolição dos Budas Gigantes de Bamiyan, pelos talibãs afegãos, em 2001. Hoje, há somente um espaço vazio onde as grandes estátuas ficavam. Entretanto, alguns temem que o estrago causado pelo EI às ruínas da antiga civilização mesopotâmica, pioneira da agricultura e da escrita, possa ser ainda mais devastador.
Foto: Mohammad Kazemian
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Para o especialista, como não é possível demover os atuais combatentes, que estão dispostos a morrer pela causa, é fundamental evitar que a organização terrorista recrute novos simpatizantes.
"Mas isso só terá sucesso se eles forem mais bem integrados no Ocidente e se, no Oriente Médio, forem resolvidos problemas centrais, como corrupção e desemprego. Se isso não acontecer, cada vez mais pessoas vão se sentir atraídas pelo EI", afirma.
Novo inimigo número um do Ocidente
Assad não é mais o inimigo número público um do Ocidente. Ele e seu regime são considerados ilegítimos, mas, em comparação com os jihadistas, mais previsíveis – e até garantia de estabilidade regional.
"O governo Barack Obama deixou claro que deseja que Bashar al-Assad permaneça no poder", afirma Nadim Shehadi. "Ele não quer um novo governo na Síria."
Na Síria, o regime Assad continua a agir contra seus inimigos. Os que mais sofrem são aqueles que moram em áreas dominadas pelo EI. Ao bombardear essas regiões, o aparato militar de Assad não se preocupa com os civis. Diante disso, a comunidade internacional continua impotente.
O jornal Al-Sharq al-Awsat publicou recentemente um amargo resumo dos fracassados esforços de paz do enviado da ONU à Síria, o ítalo-sueco Staffan de Mistura: dele, diz o diário, os sírios não viram nada além de fotos sorridentes ao lado de Assad.
"Sua missão é uma gota d'água no oceano", escreveu o jornal. "Ele precisou de quatro meses só para impor um cessar-fogo num distrito de Aleppo. E isso num país onde ocorrem destruições diariamente."
"Estado Islâmico": de militância sunita a califado
Origens do grupo jihadista remontam à invasão do Iraque, em 2003. Nascido como oposição ao domínio xiita e inicialmente um braço da Al Qaeda, EI passou por mudanças e virou uma ameaça internacional.
Foto: picture-alliance/AP Photo
A origem do "Estado Islâmico"
A trajetória do "Estado Islâmico" (EI) começou em 2003, com a derrubada do ditador iraquiano Saddam Hussein pelos EUA. O grupo sunita surgiu a partir da união de diversas organizações extremistas, leais ao antigo regime, que lutavam contra a ocupação americana e contra a ascensão dos xiitas ao governo iraquiano.
Foto: picture-alliance/AP Photo
Braço da Al Qaeda
A insurreição se tornou cada vez mais radical, à medida que fundamentalistas islâmicos liderados pelo jordaniano Abu Musab al Zarqawi, fundador da Al Qaeda no Iraque (AQI), infiltraram suas alas. Os militantes liderados por Zarqawi eram tão cruéis que tribos sunitas no Iraque ocidental se voltaram contra eles e se aliaram às forças americanas, no que ficou conhecido como "Despertar Sunita".
Foto: AP
Aparente contenção
Em junho de 2006, as Forças Armadas dos EUA mataram Zarqawi numa ofensiva aérea e ele foi sucedido por Abu Ayyub al-Masri e Abu Omar al-Bagdadi. A AQI mudou de nome para Estado Islâmico do Iraque (EII). No ano seguinte, Washington intensificou sua presença militar no país. Masri e Bagdadi foram mortos em 2010.
Foto: AP
Volta dos jihadistas
Após a retirada das tropas dos EUA do Iraque, efetuada entre junho de 2009 e dezembro de 2011, os jihadistas começaram a se reagrupar, tendo como novo líder Abu Bakr al-Bagdadi, que teria convivido e atuado com Zarqawi no Afeganistão. Ele rebatizou o grupo militante sunita como Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL).
Foto: picture alliance/dpa
Ruptura com Al Qaeda
Em 2011, quando a Síria mergulhou na guerra civil, o EIIL atravessou a fronteira para participar da luta contra o presidente Bashar al-Assad. Os jihadistas tentaram se fundir com a Frente Al Nusrah, outro grupo da Síria associado à Al Qaeda. Isso provocou uma ruptura entre o EIIL e a central da Al Qaeda no Paquistão, pois o líder desta, Ayman al-Zawahiri, rejeitou a manobra.
Foto: dapd
Ascensão do "Estado Islâmico"
Apesar do racha com a Al Qaeda, o EIIL fez conquistas significativas na Síria, combatendo tanto as forças de Assad quanto rebeldes moderados. Após estabelecer uma base militar no nordeste do país, lançou uma ofensiva contra o Iraque, tomando sua segunda maior cidade, Mossul, em 10 de junho de 2014. Nesse momento o grupo já havia sido novamente rebatizado, desta vez como "Estado Islâmico".
Foto: picture alliance / AP Photo
Importância de Mossul
A tomada da metrópole iraquiana Mossul foi significativa, tanto do ponto de vista econômico quanto estratégico. Ela é uma importante rota de exportação de petróleo e ponto de convergência dos caminhos para a Síria. Mas a conquista da cidade é vista como apenas uma etapa para os extremistas, que pretenderiam avançar a partir dela.
Foto: Getty Images
Atual abrangência do EI
Além das áreas atingidas pela guerra civil na Síria, o EI avançou continuamente pelo norte e oeste iraquianos, enquanto as forças federais de segurança entravam em colapso. No fim de junho, a organização declarou um "Estado Islâmico" que atravessa a fronteira sírio-iraquiana e tem Abu Bakr al-Bagdadi como "califa".
Foto: Reuters
As leis do "califado"
Abu Bakr al-Bagdadi impôs uma forma implacável da charia, a lei tradicional islâmica, com penas que incluem mutilações e execuções públicas. Membros de minorias religiosas, como cristãos e yazidis, deixaram a região do "califado" após serem colocados diante da opção: converter-se ao islã sunita, pagar um imposto ou serem executados. Os xiitas também eram alvo de perseguição.
Foto: Reuters
Guerra contra o patrimônio histórico
O EI destruiu tesouros arqueológicos milenares em cidades como Palmira (foto), na Síria, ou Mossul, Hatra e Nínive, no Iraque. Eles diziam que esculturas antigas entram em contradição com sua interpretação radical dos princípios do Islã. Especialistas afirmam, porém, que o grupo faturou alto no mercado internacional com a venda ilegal de estátuas menores, enquanto as maiores eram destruídas.
Foto: Fotolia/bbbar
Ameaça terrorista
Durante suas ofensivas armadas, o "Estado Islâmico" saqueou centenas de milhões de dólares em dinheiro e ocupou diversos campos petrolíferos no Iraque e na Síria. Seus militantes também se apossaram do armamento militar de fabricação americana das forças governamentais iraquianas, obtendo, assim, poder de fogo adicional.