Há algumas semanas, até parecia que mulheres estavam avançando pela igualdade, pelo menos no mundo dos esportes. Isso porque, pela primeira vez, (só agora?) uma Copa do Mundo Feminina foi levada a sério. A Copa da Austrália, que acabou dia 20 de agosto, foi transmitida na TV e comentada como se fosse esporte de verdade. Olha que incrível, finalmente descobriram que mulheres podem jogar futebol (contém ironia).
Mas não, não era nada disso. E como nada na vida das mulheres é fácil, levamos outra puxada de tapete. A prova: a vitória da Seleção da Espanha contra a Inglaterra nem pôde ser comemorada e virou um caso sério de luta contra o assédio e o machismo.
As mulheres não puderam simplesmente celebrar, desfilar em carros abertos, como fazem seus colegas homens quando ganham um campeonato mundial. Ao contrário disso, elas estão travando uma batalha contra um homem machista e suposto abusador e sendo obrigadas a fazer um movimento político contra o sexismo.
O horror que deu origem a tudo isso aconteceu já na comemoração da vitória, no dia 20, quando o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luis Rubiales, deu um beijo na boca à força na jogadora Jenni Hermoso, na frente das TVs e dos fotógrafos, como se não estivesse fazendo nada de errado.
A certeza da impunidade é realmente incrível. E é muito simbólico que isso aconteça na final da Copa do Mundo Feminina. É como se o mundo dissesse: "acharam que iam poder jogar futebol, comemorar, ser livres? Vocês que não se atrevam!"
Resultado: o que era para ser uma festa, se tornou um amplo movimento político e assunto de Estado. Na Espanha e no mundo, mulheres (e homens também) espalharam a hashtag #SeAcabó (algo como "acabou!", em tradução livre) uma espécie de "Me Too" do futebol espanhol. O movimento pede que o acusado de abuso renuncie.
Rubiales, pressionado, até se desculpou mas, ao mesmo tempo, disse que o beijo foi consentido e partiu para a guerra. Disse ser vítima de "falsas feministas" e de um "assassinato social". Quantas vezes já ouvimos essas desculpas e "mimimis" de acusados de abuso?
Em declaração oficial na semana passada, ele repetiu aos gritos, com todo o jeito de machão histérico: "não vou renunciar! Não vou renunciar!"
E partiu para o ataque. Ele tem feito algo muito comum entre abusadores: tentar silenciar a vítima por meio de processos legais. Sim, em comunicado, a federação dirigida por Rubiales disse que Jenni Hermoso seria processada pelas suas palavras e por ofender a "honra" do presidente.
Investigação e solidariedade
Mesmo assim, o movimento contra Rubiales e em solidariedade à jogadora só cresce e se espalha pelo mundo.
Ontem, a Promotoria Pública da Espanha abriu um inquérito para investigar o dirigente por possível delito de agressão sexual. No sábado, a Fifa anunciou que ele seria suspenso por 90 dias de suas atividades. Mas espera aí? Só isso, Fifa? Isso não parece punição, mas um castigo leve para um "garoto" que fez uma bobagem (sic).
Enquanto isso, as jogadoras campeãs do mundo fazem uma espécie de rebelião. Todas as atletas do time espanhol avisaram que não pisarão em campo enquanto o dirigente não renunciar. Onze integrantes da comissão técnica da seleção vencedora se demitiram.
Muitos de seus colegas homens apoiam as moças. No sábado, jogadores do Sevilla usaram uma camiseta com a inscrição "SeAcabó" (acabou) em apoio às colegas.
O caso chegou ao governo. Enquanto ministras se manifestaram em apoio às mulheres, o primeiro-ministro do país, Pedro Sanchez, disse que as desculpas do dirigente não eram o suficiente e lamentou: "nosso país ainda tem um longo caminho a percorrer em termos de igualdade e respeito e na equiparação de direitos entre mulheres e homens."
Parece muito difícil que Rubiales permaneça no cargo. Mesmo que a condescendência da Fifa e de seus colegas homens da federação (o velho pacto da masculinidade tóxica) permaneça, ele provavelmente não vai ter escolha. Ou vai ficar sozinho gritando: "não renuncio, não renuncio" para uma plateia cada vez mais vazia?
Mas mesmo se ele renunciar, o que será uma vitória do movimento # SeAcabó, não acho que teremos o que celebrar.
É inadmissível que um gesto de abuso como esse aconteça, ainda mais em um evento de futebol que deveria dar protagonismo para mulheres e para a luta por igualdade. Era para estarmos falando de jogadoras geniais, não de um dirigente machista.
Enquanto esse tipo de coisa ainda acontecer, não teremos nada para comemorar.
E ter que lutar o tempo todo, fazer de tudo um movimento político é cansativo, sabe? As mulheres da seleção espanhola só deveriam estar fazendo algo que ainda parece ser impossível para as mulheres: brindar, relaxar e receber todas as glórias a que tem direito depois de um trabalho árduo e bem feito. Quem sabe um dia?
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.