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Até que ponto a independência da PF está sob risco?

13 de outubro de 2020

Sob o governo Bolsonaro, denúncias de interferência na Polícia Federal se avolumam. Acusações, porém, acompanharam quase todos os governos da Nova República. Especialistas defendem mudanças para blindar instituição.

Distintivo de agente da Polícia Federal
Constituição Federal garante independência da PFFoto: picture-alliance/dpa/M. Brandt

A participação ativa no desmembramento de esquemas de corrupção e outros crimes colocaram a Polícia Federal em evidência nos últimos anos. Se, por um lado, a instituição dá sucessivas provas de competência, episódios recentes levantam dúvidas sobre sua independência no atual governo.

Ao longo deste ano, várias ações envolvendo a PF levantaram questionamentos. O episódio mais recente ocorreu no final de setembro, quando Guilherme Boulos, candidato do PSOL à prefeitura de São Paulo, foi intimado a depor. O órgão abriu inquérito para investigá-lo por uma postagem no Twitter feita em abril, quando o presidente Jair Bolsonaro afirmou, na saída do Palácio da Alvorada, que ele era a própria Constituição.

"Um lembrete para Bolsonaro: a dinastia de Luís 14 terminou na guilhotina", escreveu Boulos, em referência ao absolutismo francês do século 17, encarnado na frase "o Estado sou eu", atribuída ao rei Luís 14 (1638-1715).

O pedido de investigação teria partido do próprio ministro da Justiça, André Mendonça. Segundo o portal UOL, ele atendeu a um requerimento enviado por ofício pelo deputado federal José Medeiros (Pode-MT), defensor ativo de Bolsonaro nas redes sociais. Como o presidente apoia o candidato Celso Russomano (PRB) nas eleições municipais de São Paulo, o inquérito aberto pela Polícia Federal contra Boulos levantou suspeitas de uso político da instituição.

Em abril, o então ministro da Justiça Sergio Moro, durante o anúncio de sua demissão, acusou Bolsonaro de interferência na PF, afirmando que o presidente tinha exigido a troca do comando da Polícia Federal, com o objetivo de nomear um diretor-geral que repassasse ao presidente informações sobre investigações e inquéritos em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF). A grave acusação levou o STF a abrir um inquérito para apurar o caso.

As acusações foram engrossadas em maio, quando o órgão realizou a operação Placebo, que mira um suposto esquema de desvios de recursos públicos destinados ao combate do coronavírus e teve o governador do Rio Wilson Witzel (PSC) como alvo. Ex-aliado de Bolsonaro nas eleições de 2018, Witzel se tornou desafeto do presidente, ao lado do governador de São Paulo, João Dória.

Acusado de aparelhar a PF na ocasião, o presidente sinalizou a apoiadores que teria ingerência sobre o órgão. "Enquanto eu for presidente, vai ter mais", disse na saída do Alvorada sobre a operação. Na véspera da das ações de busca e apreensão contra o governador do Rio, a deputada bolsonarista Carla Zambelli (PSL-SP) disse em entrevista que haveria operações contra governadores nos próximos meses.

Suspeitas em praticamente todos os governos

Bolsonaro não é o primeiro presidente a ser acusado de tentar interferir na PF, cuja independência é garantida pela Constituição Federal, que completou 32 anos na última segunda-feira (05/10). Em seu artigo 144, a carta magna constituiu a Polícia Federal e definiu suas funções específicas. A visão da PF como um órgão de Estado, e não mais de governo, foi consolidada pela sua estruturação em carreira, no lugar de indicações.

Apesar do importante passo rumo à profissionalização, a PF só começou a se modernizar no início dos anos 2000. Seu orçamento saltou de R$ 100 milhões em 1999 para R$ 600 milhões em 2006, o que alçou a instituição a outro patamar operacional.

Acusações de interferência acompanharam quase todos os governos da Nova República. No de Fernando Henrique Cardoso, um diretor-geral da PF afirmou ter recebido ordens do presidente para omitir um documento que o isentava de acusações de fraude fiscal, que se revelariam infundadas.

Em 2007, quando Lula trocou o diretor-geral da Polícia Federal e o presidente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), foi acusado de querer mais informações sobre as operações da PF e considerar o trabalho da Abin ineficiente. À época, ele negou.

Rumores de interferência se avolumaram conforme a atuação da PF passou a ter um impacto profundo sobre o mundo político e empresarial, no contexto da Lava Jato. Sobretudo a partir do segundo governo de Dilma Rousseff, quando a operação atingiu em cheio o Partido dos Trabalhadores e seu principal líder, o ex-presidente Lula.

Ministro da Justiça entre 2011 e 2016, o advogado José Eduardo Cardozo chegou a afirmar publicamente que sofreu pressão da cúpula petista para fazer um "controle político" da Polícia Federal no ano de sua saída do cargo. Segundo Cardozo, a ex-presidente Dilma nunca concordou com as exigências.

Em fevereiro de 2018, um grupo de delegados da PF responsáveis pela investigação de pessoas com foro privilegiado entregou um memorando ao diretor de combate ao crime organizado na instituição, Eugenio Ricas, afirmando que não admitiriam qualquer interferência em seu trabalho.

O documento foi elaborado após o então diretor-geral da PF, Fernando Segovia, declarar em entrevista que não havia indício de crime na investigação sobre o ex-presidente Michel Temer. Segovia foi intimado a depor pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso, que viu risco à autonomia do delegado responsável pelo caso.

Apesar das suspeitas levantadas em governos anteriores, a independência da PF nunca esteve tão ameaçada quanto no mandato de Jair Bolsonaro, na avaliação do jurista Antonio Santoro, professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

"Está muito claro que, neste governo, a PF não é independente. Isso não significa que em outros ela tivesse sido. Porém, com a redemocratização, a independência foi se construindo no contexto de uma institucionalidade crescente", afirma.

Na avaliação de Santoro, a PF e demais instituições policiais estão vulneráveis a interferências políticas uma vez que os cargos de chefia são indicados pelo poder Executivo. Não há sequer um corte técnico do corpo de delegados para auxiliar a escolha, ao estilo da lista tríplice do Ministério Público Federal.

"Dessa forma, o chefe do Executivo determina as políticas criminais. Muito embora o Judiciário julgue, quem seleciona o que será julgado é sobretudo a polícia, hoje ao lado do Ministério Público. Infelizmente, não criamos mecanismos suficientes para blindar essas instituições, a não ser a boa vontade dos governantes", diz.

Mudanças para blindar a PF

Para Edvandir Felix de Paiva, presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), a instituição de um mandato para o diretor-geral do órgão é a medida mais urgente para garantir a real independência de atuação da PF. No FBI norte-americano, o mandato é de dez anos.

"O presidente pode nomear e exonerar no mesmo dia, se entender que deve fazê-lo. A lei não estabelece limites. Um mandato de dois ou três anos poderia ser discutido com tranquilidade. Dentro da institucionalidade, como ocorre no MP", defende.

Paiva ressalta que, além dos prejuízos à gestão direta da PF, a rotatividade abala a credibilidade da instituição junto à sociedade. Desde 2018, a PF está no quarto diretor-geral. "A cada troca, vem a especulação: para que está mudando? Nós, de dentro, demoramos muito para conseguir o respeito da população, então esse ambiente nos preocupa", comenta.

O presidente da ADPF avalia que, até agora, a interferência política do atual governo se resume a suspeitas. Em sua visão, não há um monopólio da tentativa de controle da PF por nenhum grupo político, porque todos acabam sendo atingidos por investigações. Paiva diz que a preocupação deveria se concentrar na possibilidade de uma intervenção silenciosa.

"As nomeações dos cargos internos da PF passam pela Casa Civil e Ministério da Justiça. O diretor-geral não tem autonomia para montar sua equipe. Os superintendentes regionais têm controle sobre verba e pessoal nos estados. Qualquer investigação passa pela aprovação deles. Se ele tem ligações políticas, pode atrapalhar. Por isso é tão importante blindar e dar autonomia a um diretor com mandato", afirma.

O advogado criminalista Luis Henrique Machado, doutor em processo penal pela Universidade de Humboldt, reforça a necessidade de aguardar investigações sobre os atos do presidente antes de associá-los a uma tentativa de interferência na Polícia Federal.

"Compete ao Presidente da República nomear o diretor-geral da PF, mas isso não autoriza interferência do chefe do Executivo no âmbito da atividade policial. Caso isso ocorra, pode configurar, em tese e a depender do caso, o crime de obstrução de justiça (pena de três a oito anos) ou de advocacia administrativa (um a doze meses)", explica.

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