Até que ponto funcionou o acordo de grãos Ucrânia-Rússia?
Arthur Sullivan
17 de março de 2023
Iniciativa permitiu que cereais ucranianos fluíssem para o mercado internacional. Prestes a expirar, ela trouxe alívio, mas problemas estruturais permanecem. Países pobres são maiores vítimas.
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Nos cinco meses seguintes ao início da invasão pela Rússia, em 24 de fevereiro de 2022, a Ucrânia, uma das principais fornecedoras de cereais e outros produtos agrícolas, ficou impedida de exportar seus produtos. Ao bloquear os portos ucranianos, os russos interromperam uma artéria vital do sistema alimentar global.
Como advertiram especialistas em segurança alimentar, essa estratégia era potencialmente catastrófica para os países mais pobres, por gerar escassez de grãos e consequente aumento de preços. Em julho, por fim, Kiev e Moscou firmaram um acordo a respeito, sob mediação da Turquia e da Organização das Nações Unidas.
A Iniciativa dos Grãos do Mar Negro tem sido basicamente respeitada, apesar de alguns percalços, como as ameaças russas de se retirar. Em 18 de março, ela expira, e negociações para renová-la estão em curso. Poucos dias antes, Moscou declarou-se disposto a estendê-la por mais 60 dias – a metade do prazo acordado na última prorrogação, em novembro – alegando restrições a suas próprias exportações agrícolas.
Embora as vendas de alimentos russos não tenham sido diretamente penalizadas, as autoridades do país invasor afirmam que sanções secundárias à logística e segurança dificultaram suas atividades exportadoras, e há meses têm expressado descontentamento a respeito.
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Evitando o mal pior
William Moseley, membro do Painel da ONU de Peritos de Alto Nível em Segurança Alimentar e Nutrição (HLPE-FSN, na sigla em inglês), rebate em parte tais alegações: de fato, sob o acordo a Rússia tem tido dificuldades para exportar fertilizantes. Por outra lado, suas vendas de trigo duplicaram, sugerindo que o país está indo "muito bem".
Essa avaliação evidencia como é complexo analisar a Iniciativa do Mar Negro, oito meses após sua entrada em vigor. No início de março, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que o pacto "contribuiu para reduzir o custo global dos alimentos, proporcionando alívio crítico". Para o diretor do Programa Alimentar Mundial (WFP), David Beasley, é "crítico" renová-lo.
O presidente do HLPE-FSN, Bernard Lehmann, confirma que o pacto sobre os grãos teve efeito significativo para minorar a fome tanto em partes do norte e leste da África, como no Oriente Médio e Ásia: "Sem o acordo, teria ocorrido escassez desse artigo de importação, e os preços teriam subido ainda mais, tornando a compra de trigo muito, muito cara para esses países. Então, no geral, ele acalmou o mercado, e esses países se beneficiaram."
Moseley descreve a iniciativa como "um sucesso confirmado", que contribuiu para uma redução de 8% dos preços internacionais dos cereais e permitiu à Ucrânia ampliar sua capacidade de armazenamento e continuar produzindo. Portanto, "o acordo pode ser considerado bem-sucedido, sobretudo se a meta era aplacar os medos e estabilizar os preços".
No entanto, ele frisa que os preços não retornaram a seus níveis de antes da guerra, e o acordo expôs a grande vulnerabilidade de certos países africanos a turbulências no abastecimento e volatilidade dos preços dos cereais. O professor de geografia do Macalester College de Minnesotta, EUA, aponta que os países que produzem seus próprios grãos, mesmo espécies tradicionais menores, como painço ou sorgo, atravessaram bem melhor a crise recente.
"Produção mais localizada de uma diversidade de grãos em diversos países africanos é a melhor solução, no longo prazo. A crise alimentar é também mais aguda nas áreas sob o impacto de conflitos, como a Somália e o Iêmen. Esse acordo não ajuda em tais situações, embora historicamente o Programa Alimentar Mundial, que intervém em situações emergenciais, tenha obtido da Ucrânia grande parte de seus cereais."
Grãos para os ricos?
Uma crítica persistente à iniciativa para os grãos é que as nações mais ricas, inclusive várias da União Europeia, receberam mais cereais ucranianos, após o bloqueio, do que as de regiões mais pobres.
Moseley confirma essa acusação. Porém muito do que foi exportado através da iniciativa era milho, não trigo. Além disso, a principal meta do acordo seria seu impacto nos mercados internacionais de cereais, mais do que o fluxo a partir da Ucrânia, em si.
"O mais importante é os grãos entrarem no mercado. Isso, mais o aplacamento dos medos, exerce pressão negativa sobre os preços, para o benefício de todos, mas sobretudo dos países mais pobres, mais inseguros do ponto de vista alimentar, que não são importadores líquidos."
Agora o foco está em conseguir renovar o pacto nos próximos meses: um fracasso nesse sentido resultaria em enorme encarecimento, o que pressionaria ainda mais as regiões já sujeitas a insegurança alimentar, alerta Lehmann. Essa é uma ameaça que está atingindo de forma aguda 328 milhões de habitantes de 82 países, registra o WFP, descrevendo a situação como uma "crise global de fome de proporções inéditas".
Não obstante, o presidente do HLPE-FSN está confiante que é do interesse russo renovar o pacto. Moseley concorda, comentando que essa seria uma maneira de Moscou conquistar boa vontade para com seus aliados na África.
Por outro lado, mesmo sendo benéfica no curto prazo, a Iniciativa do Mar Negro não aborda o problema estrutural de diversos países pobres, de depender de um número reduzido de grãos – apenas trigo, milho e arroz –, de uns poucos fornecedores: "No prazo mais longo, precisamos de um sistema alimentar global mais resiliente, alimentado por uma palheta mais ampla de grãos, de fontes mais diversificadas", urge Lehmann.
Um ano de guerra da Ucrânia: uma linha do tempo em imagens
Na manhã de 24 de fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia. Em um ano de combates, milhares de soldados e civis perderam a vida. Relembre os fatos mais marcantes nesta linha do tempo.
Foto: Anatolii Stepanov/AFP/Getty Images
Um dia sombrio para milhões
Na manhã de 24 de fevereiro de 2022, os ucranianos foram acordados por explosões como esta na capital, Kiev. A Rússia havia iniciado uma invasão em grande escala, marcando o maior ataque de um país contra outro desde a Segunda Guerra Mundial. A Ucrânia imediatamente declarou a lei marcial. Estruturas civis passaram a ser atacadas e logo começaram a ser relatadas as primeiras mortes.
Foto: Ukrainian President s Office/Zuma/imago images
Bombardeios impiedosos
O presidente russo, Vladimir Putin, insiste ainda hoje tratar-se de uma "operação militar especial" e que o objetivo é tomar as regiões de Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia. Moradores de Mariupol se abrigaram em porões por semanas. Muitos morreram sob os escombros. Um ataque aéreo russo em março a um teatro da cidade onde centenas se refugiavam foi condenado por grupos de direitos humanos.
Foto: Nikolai Trishin/TASS/dpa/picture alliance
Êxodo em massa
A guerra na Ucrânia forçou uma emigração nunca vista na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. De acordo com a Acnur, a agência de refugiados da ONU, mais de 8 milhões de pessoas fugiram do país. Só a Polônia acolheu 1,5 milhão de pessoas, mais do que qualquer outro Estado da UE. Milhões de pessoas, principalmente do leste e do sul da Ucrânia, foram forçadas a fugir.
Foto: Anatolii Stepanov/AFP
Cenas de horror em Bucha
Após algumas semanas, o exército ucraniano conseguiu expulsar as forças russas de áreas no norte e nordeste do país. O plano da Rússia de sitiar Kiev fracassou. Depois que as regiões foram libertadas, a extensão das atrocidades tornou-se aparente. Imagens de civis torturados e assassinados em Bucha, perto de Kiev, deram a volta ao mundo. As autoridades relataram 461 mortes.
Foto: Carol Guzy/ZUMA PRESS/dpa/picture alliance
Devastação e morte em Kramatorsk
O número de vítimas civis em Donbass aumentou rapidamente. As autoridades pediram à população civil para recuar para áreas mais seguras, mas os mísseis russos também atingiram as pessoas enquanto tentavam escapar, inclusive em Kramatorsk. Mais de 61 foram mortos e 120 ficaram feridos na estação ferroviária da cidade em abril, quando milhares esperavam para fugir para um local mais seguro.
Durante os ataques aéreos russos, milhões de ucranianos buscaram refúgio em algum tipo de abrigo. Para as pessoas próximas às linhas de frente dentro do alcance da artilharia, os porões se tornaram segundos lares. Moradores de grandes cidades também buscaram abrigo dos mísseis. Em Kiev (foto) e em Kharkiv, as estações de metrô funcionam como locais seguros.
Foto: Dimitar Dilkoff/AFP/Getty Images
Alto risco nuclear em Zaporíjia
Nas primeiras semanas após a invasão, a Rússia ocupou uma grande área das regiões sul e leste da Ucrânia, inclusive as proximidades de Kiev. Os combates se espalharam para as instalações do complexo nuclear de Zaporíjia, no sudeste, que está sob controle russo desde então. A Agência Internacional de Energia Atômica enviou especialistas para a usina e pediu uma zona segura ao redor da instalação.
Foto: Str./AFP/Getty Images
Resistência desesperada em Mariupol
O exército russo manteve Mariupol sob cerco por três meses, impedindo o envio de munição e outros suprimentos. O complexo siderúrgico Asovstal era o último reduto ucraniano na cidade, abrigando milhares de soldados e civis. Depois de um ataque prolongado, em maio de 2022 milhares de soldados russos assumiram o controle da usina, capturando mais de 2 mil pessoas.
Foto: Dmytro 'Orest' Kozatskyi/AFP
Um símbolo de resistência
A Rússia conquistou a Ilha das Cobras, no Mar Negro, no primeiro dia da guerra. Um diálogo entre militares ucranianos e russos, na qual os ucranianos se recusaram a se render, se tornou viral. Em abril, os ucranianos afirmaram ter afundado o navio de guerra russo Moskva, uma das duas embarcações envolvidas no ataque à ilha. Em junho, a Ucrânia disse ter expulsado os russos da ilha.
Foto: Ukraine's border guard service/AFP
Número de mortos incerto
O número exato de mortos na guerra permanece incerto. Segundo a ONU, pelo menos 7.200 civis foram mortos e outros 12 mil, feridos – mas os números reais podem ser muito maiores. A quantidade exata de soldados ucranianos tombados também é incerta. Em dezembro, o conselheiro presidencial da Ucrânia, Mykhailo Podolyak, estimou o número em até 13 mil. Estatísticas imparciais não estão disponíveis.
Foto: Raphael Lafargue/abaca/picture alliance
Divisor de águas para a Ucrânia
O envio de armas ocidentais à Ucrânia tem sido um assunto polêmico desde o começo da guerra, mas elas demoraram a chegar a Kiev. Os lançadores de foguetes Himars, fabricados nos EUA, foram uma ajuda decisiva. Eles permitiram que os militares ucranianos cortassem o abastecimento de munição para a artilharia russa e provavelmente também contribuíram para as contraofensivas bem-sucedidas da Ucrânia.
Foto: James Lefty Larimer/US Army/Zuma Wire/IMAGO
Alívio a cada libertação
No início de setembro, os militares ucranianos conduziram uma contraofensiva bem-sucedida em Kharkiv, no nordeste do país. Os russos, surpreendidos, recuaram rapidamente, deixando para trás equipamentos, munições e até evidências de supostos crimes de guerra. Os militares ucranianos também conseguiram libertar Kherson, no sul, e seus moradores comemoraram a chegada dos soldados ucranianos.
Foto: Bulent Kilic/AFP/Getty Images
Explosão na ponte da Crimeia
No início de outubro, ocorreu uma grande explosão na ponte que a Rússia construiu sobre o Estreito de Kerch, ligando à Crimeia, península ucraniana que Moscou ocupa desde 2014. A ponte foi parcialmente destruída. A Rússia afirma que um caminhão da Ucrânia carregado de explosivos causou os danos, mas as autoridades em Kiev não assumiram a responsabilidade pelo ataque.
Foto: AFP/Getty Images
Ataques maciços à infraestrutura de energia
Poucos dias após a explosão na ponte da Crimeia, a Rússia começou a atacar em grande escala a infraestrutura de energia da Ucrânia. Quedas de energia ocorreram de Lviv a Kharkiv. Desde então, esses ataques se tornaram rotina. Devido aos enormes danos às usinas de energia e outras infraestruturas civis, as pessoas na Ucrânia enfrentam quedas de energia e escassez de água quase diariamente.
Foto: Genya Savilov/AFP/Getty Images
Apoio do mundo ocidental
Mensagens diárias por vídeo do presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, em que ele relata a situação no país e sobre a guerra em andamento, são vistas por milhões de pessoas. Zelenski não só conseguiu unificar a população de seu país, mas também ganhou o apoio do Ocidente. A integração europeia progrediu muito sob a sua liderança, e a Ucrânia está a caminho da adesão à UE.
Foto: Kenzo Tribouillard/AFP
Esperando por tanques Leopard 2
A defesa da Ucrânia depende muito da ajuda externa. Um grupo de países liderado pelos EUA ofereceu um pacote de bilhões de dólares em ajuda humanitária, financeira e militar. O envio de artilharia pesada foi muito debatido no Ocidente, em grande parte devido a preocupações com a reação da Rússia. Mas a Ucrânia acabará recebendo tanques ocidentais, em sua maioria Leopard 2, de fabricação alemã.
Foto: Ina Fassbender/AFP/Getty Images
Uma cidade em ruínas
Há meses, batalhas sangrentas acontecem em Bakhmut, na região de Donetsk. Desde que as tropas ucranianas perderam o controle do vilarejo de Soledar no início de 2023, defender a cidade tornou-se ainda mais difícil. Em janeiro, o serviço secreto da Alemanha relatou perdas diárias de três dígitos do lado ucraniano. Mas acredita-se que o número de mortos na Rússia seja ainda maior.