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Auditores denunciam retrocesso no combate à corrupção

14 de outubro de 2019

Em carta a órgão internacional contra crimes financeiros, sindicato de auditores da Receita diz que país passa por "ampla desestruturação" no sistema anticorrupção.

Notas de real brasileiro
Brasil é um dos 39 membros do Gafi, criado em 1989 após reunião de cúpula das maiores economias do mundoFoto: picture-alliance/dpa/L. Schulze

O Brasil pode virar pauta na semana de reuniões do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi/Faft), uma espécie de força-tarefa internacional permanente que reúne 39 membros no combate a crimes financeiros. Até a próxima sexta-feira (18/10), membros do Gafi cumprem uma agenda intensa de discussões em Paris.

Em carta ao órgão intergovernamental, o sindicato que reúne mais de 90% dos auditores da Receita Federal brasileira denunciou que, nos últimos meses, está em curso no país uma "ampla desestruturação no sistema de combate à corrupção, à lavagem de dinheiro e ao terrorismo".

"Vários órgãos tomaram iniciativas para tolher a atuação dos auditores da Receita Federal justamente nessa área", diz à DW Brasil Kleber Cabral, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco), que assina a carta de 18 páginas, endereçada ao secretário-geral do Gafi, David Lewis.

Segundo Cabral, decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) limitaram a atuação da Receita Federal e do antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), transformado em Unidade de Inteligência Financeira e atualmente vinculado ao Banco Central. Além disso, pressões do Tribunal de Contas da União (TCU) tentariam intimidar o trabalho de fiscalização.

O Brasil é um dos 39 membros do Gafi, criado em 1989 após uma reunião de cúpula das maiores economias do mundo. A função do grupo é elaborar recomendações de repressão a crimes que ameaçam a integridade do sistema financeiro internacional, como a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo.

Até o momento, o Brasil é avaliado como um país comprometido com as recomendações dadas pelo grupo. "Isso significa um status de país confiável no combate à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo", pontua Aphonso Mehl Rocha, consultor internacional e ex-chefe na área de compliance dos bancos HSBC, Bradesco e BNP Paribas.

Por outro lado, ele considera "grave" a denúncia de que o país estaria enfraquecendo a adesão às recomendações do Gafi. Caso o órgão emita um comunicado dizendo que tem preocupações em relação ao Brasil, a repercussão pode ser bastante negativa.

"Poderia impactar em acordos comerciais e em uma eventual entrada do país na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e na Organização Mundial do Comércio (OMC)", aponta Rocha. "Comercialmente, é ruim para a competitividade brasileira em geral."

Bastidores da denúncia 

Segundo o Sindifisco, a tentativa de barrar o trabalho dos auditores da Receita tem uma origem clara. "É uma reação de grupos de interesse que foram atingidos pelas operações e pelo trabalho da Receita", afirma Cabral, presidente do sindicato.

Embora tenha uma atuação muita vezes discreta, informações fornecidas pela Receita a órgãos como Ministério Público e Polícia Federal são o nascedouro de muitas investigações e prisões, como as ocorridas no âmbito da Operação Lava Jato.

De acordo com os auditores, um trabalho específico de investigação iniciado há cerca de um ano e focado nas chamadas "pessoas politicamente expostas" gerou uma reação no STF. Esse grupo de pessoas abrange agentes públicos que, segundo o conceito internacional, estão mais expostas a cometer o crime de lavagem de dinheiro. No Brasil, a lista inclui políticos como prefeitos, deputados, senadores e também juízes.

Como resultado dessa investigação específica com base na metodologia indicada pelo Gafi, os auditores chegaram a 133 nomes que fizeram movimentações financeiras suspeitas e que, segundo as recomendações, deveriam ser melhor apuradas pelas autoridades.

"Isso mexeu com grupos de interesses atingidos, que estão dentro do STF e do TCU", afirma Cabral.

Em julho último, o ministro Dias Toffoli, presidente do STF, suspendeu todos os processos judiciais iniciados a partir de dados compartilhados por órgãos de fiscalização e controle, como Coaf, Banco Central e Receita, sem autorização prévia da Justiça.

A medida atendeu ao pedido do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, investigado no caso de seu ex-assessor Fabrício Queiroz num suposto esquema de "rachadinha" – quando um servidor repassa parte de seu salário ao político que o contratou. Mais tarde, a decisão de Toffoli foi reforçada pelos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes.

"Essa decisão liminar de suspender todas as investigações de forma genérica atrapalha muito. Seguramente muitas investigações de vulto estão paralisadas. E no sentido técnico é altamente questionável e está gerando um prejuízo bastante significativo", critica Rodrigo Chemim, procurador do Ministério Público Estadual do Paraná.

Ainda segundo o Sindifisco, numa postura alinhada com o STF, o TCU entrou com um pedido que exige que a Receita Federal apresente o nome de todos os auditores que fiscalizaram autoridades públicas, bem como as informações que foram consultadas.

"Isso é muito grave porque expõe os auditores e as investigações em curso. Essa exposição é uma interferência indevida e vai na contramão das recomendações do Gafi", diz Cabral. "É uma tentativa de intimidação justamente para que ninguém mais queira se me meter com gente poderosa."

Contramão internacional

Entre as 40 recomendações já emitidas aos membros signatários do Gafi, várias ressaltam a importância da independência e da autonomia na fiscalização sobre a atividade suspeita de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo.

"O Coaf, por exemplo, não foi criado porque o Brasil quis, mas porque uma dessas recomendações dizia que cada país-membro deveria ter um serviço de inteligência financeira para identificar transações suspeitas", explica o consultor Aphonso Mehl Rocha.

No Brasil, parte desse serviço de identificar irregularidades é feita pela Receita Federal e pelo Coaf. Desde que foi criado, em 1998, o Coaf elaborou mais de 4 mil relatórios de inteligência financeira a partir de trocas de dados feitas entre órgãos.

"Quando a Receita, que é obrigada a investigar pessoas politicamente expostas, não pode dar prioridade para essas pessoas e há uma reação de sanção aos investigadores, isso provoca a suspeita de que essa área não teria autonomia necessária para seguir com sua investigação", afirma Rocha.

Para o procurador da Justiça Rodrigo Chemim, impedir a ação do Coaf – consequência da decisão de Toffoli – trava o combate à corrupção em várias esferas, desde o desvio de dinheiro público ao tráfico de drogas. "Inúmeras investigações e prisões foram possíveis devido às informações que chegaram via Coaf", afirma ele.

Ainda não se sabe que tipo de efeito prático imediato a carta-denúncia enviada ao Gafi pode surtir, já que o caso é inédito no país. "Essa denúncia representa também um grito de socorro para organismos internacionais, para que olhem para o Brasil e pressionem o Estado brasileiro a se recompor", diz Cabral sobre as expectativas.

Até o fechamento desta reportagem, ninguém foi encontrado no STF para comentar o caso.

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