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"Autorreflexão será importante para mídia brasileira"

1 de janeiro de 2019

A chegada da extrema direita ao Planalto impõe novos desafios à imprensa. Em entrevista, especialista em populismo e comunicação diz por que o jornalismo terá que se reinventar num contexto de descrédito e "fake news".

Jornalista durante a cobertura da campanha de Bolsonaro: presidente várias vezes atacou a imprensa
Jornalista durante a cobertura da campanha de Bolsonaro: presidente várias vezes atacou a imprensaFoto: picture-alliance/AP Photo/L. Correa

A ascensão de extremistas e populistas de direita pelo mundo representou um novo desafio à imprensa tradicional. Muitas vezes alvo direto de ataques, ela vem tendo dificuldades de atuar num cenário inundado por "fake news". Para a cientista política Paula Diehl, docente nas Universidades Humboldt de Berlim e de Bielefeld, a imprensa precisará se reinventar nesse contexto, investindo em análise e contextualizações.

"Ser neutro não significa falar sempre bem e mal de cada um. Se um ator político é antidemocrático e é antidemocrático o tempo inteiro, isso tem que ser mostrado. Neutralidade não quer dizer distribuir críticas em quantidades iguais a todos os partidos políticos, mas sim utilizar os mesmos critérios para a crítica", destaca a pesquisadora especializada em populismo, nazismo e comunicação na política.

Em entrevista à DW, Diehl comenta as estratégias midiática de Jair Bolsonaro, que inicia seu governo neste 1º de janeiro, e avalia como a imprensa deve se portar diante da chegada da nova extrema direita ao Planalto.

DW Brasil: Bolsonaro costuma dar declarações controversas, voltando atrás de muitas delas. Como a imprensa deveria lidar com esse tipo de declaração? Ignorar ou publicar?

Paula Diehl: Essa tática é a mesma do Donald Trump, que é uma mescla de populismo com uma certa lógica de "reality show", mistura ficção com realidade. Ela não funciona necessariamente como comunicação política, mas como entretenimento. Voltar atrás e dizer várias coisas que são contraditórias, na verdade, tem dois níveis de entendimento: o primeiro é o político, que significa voltar atrás na política, ou seja, mudar de ideia ou de opinião; e o segundo é o do próprio entretenimento, ao voltar atrás cria-se várias expectativas como ao assistir uma série de televisão, onde se quer ver mais para saber o que vai acontecer no próximo capítulo. Isso para o discurso político é muito problemático, pois, no caso de Trump e Bolsonaro, além de aumentar o risco de o populismo de direita virar hegemônico, provoca também a perda de importância da realidade política, ou seja, tanto faz o que é dito, o que atrai interesse é o próximo capítulo.

A imprensa se vê então numa situação difícil...

É muito difícil não prestar atenção no que o presidente fala, o que ele fala é por definição importante. A imprensa está numa situação muito difícil porque tem que noticiar o que o presidente fala, principalmente, se for um absurdo. O único jeito de lidar com isso é criando formatos de jornalismo investigativo que possam, ao mesmo tempo, provocar um interesse emocional, mas sem sair da seriedade do jornalismo investigativo. Isso é muito complexo e difícil, mas nos Estados Unidos já está acontecendo.

Onde já se vê esse formato?

O jornal The New York Times, por exemplo, depois que o Trump assumiu, lançou a série "The Daily", que são podcasts de cerca de 20 minutos sobre um tema específico, dando um espaço maior, que geralmente não há no jornal, para pautas. Essa série tem um teor de jornalismo investigativo e abre uma perspectiva ampla com relação ao tema, além de permitir um envolvimento emocional do público na investigação, criando uma identificação com o repórter.

A questão é onde estão os formatos que poderiam ser interessantes para a mídia não perder a audiência e, ao mesmo tempo, continuar fazendo um jornalismo investigativo. O segundo ponto é não abdicar da crítica, se determinado partido ou político age de forma antidemocrática, isso deve ser dito e analisado.

Pode-se esperar confrontos diretos de Bolsonaro com jornalistas?

Tudo indica que sim. Agora, se esse confronto vai acontecer no Brasil de uma forma mais discursiva, como é o caso do Trump, que está o tempo todo atacando a mídia, ou se haverá leis repressivas, como foi o caso da Hungria e da Turquia, ainda não dá para saber. Até agora, Bolsonaro atacou a imprensa discursivamente e ameaçou retirar anúncios governamentais da Folha de S. Paulo, que seria algo entre essas duas direções.

Qual será o papel principal da imprensa no governo Bolsonaro?

Isso dependerá de como o novo governo vai se comportar. Não sabemos se o que aconteceu durante a campanha eleitoral era só tática discursiva ou se as pautas antidemocráticas realmente terão um programa político. Normalmente, o que ocorre é uma tática discursiva para se ganhar a eleição, mas quanto disso será transformado em programa é muito difícil dizer. Se houver leis restringindo a liberdade de imprensa será muito complicado lidar com essa situação.

Por quê? 

Pode acontecer o mesmo que está acontecendo nos Estados Unidos, onde as críticas ao governo passam a ser descritas como "fake news" pelo presidente e seus assessores. Vivemos numa sociedade onde a preocupação com o fato está perdendo cada vez mais relevância. Quando políticos começam a responder às críticas ou a confrontações com fatos incômodos com a estratégia "essa é minha opinião, essa é a sua opinião", o fato perde completamente a importância. Com isso, o problema de algo ter acontecido ou não fica suspenso porque vira uma questão de opinião.

E, nesse cenário, como trazer os fatos à tona?

A imprensa tem que trazer os fatos, caso contrário, ela não tem mais função. A imprensa precisa estar muito atenta às críticas e fazer uma análise de discurso quando um político fala que A é B, para mostrar os parâmetros que estão sendo utilizados para modificar o sentido das palavras e dos fatos. Ela precisa analisar e contextualizar. O jornalismo precisará investir nesse tipo de análise, pois só dizer que o fato não corresponde com o que está sendo dito não vai funcionar, é preciso mostrar passo a passo como as palavras daquele que está distorcendo os fatos estão mudando de sentido.

A imprensa alemã tem lidado com o partido populista de direita Alternativa para a Alemanha (AfD) e suas polêmicas há alguns anos. A imprensa brasileira pode tirar lições da atuação da imprensa alemã neste caso?

A imprensa alemã demorou muito tempo para acordar. Depois das eleições de 2016, aconteceu uma certa confusão entre ser neutro e dar o mesmo espaço para todos os políticos na área democrática. Ser neutro não significa falar sempre bem e mal de cada um. Se um ator político é antidemocrático e é antidemocrático o tempo inteiro, isso tem que ser mostrado. Houve essa confusão de sempre tentar tratar a AfD positivamente, porque eles eram tratados de forma negativa. A AfD tem sim que ser tratada de forma neutra. Mas isso implica ser tratada de forma crítica como os outros partidos. Neutralidade não quer dizer distribuir críticas em quantidades iguais a todos os partidos políticos, mas sim utilizar os mesmos critérios para a crítica. Essa confusão parece ter sido percebida no começo deste ano, quando a mídia, principalmente o rádio, começou a repensar as bases com as quais estava lidando com a legenda. Agora, a mídia alemã começou a fazer uma autocrítica se questionando se estava reproduzindo a ideologia da AfD e se estava perguntando o que realmente tem que ser perguntado. Essa autorreflexão também é muito importante para mídia brasileira.

No Brasil, a imprensa tradicional vem perdendo importância como canal de informação nos últimos anos. Muitos brasileiros se informam somente por redes sociais e Whatsapp, e a eleição comprovou que esses canais estão contaminados com notícias falsas. O que a imprensa tradicional pode fazer para recuperar essa importância?

A imprensa vem de uma crise, principalmente o jornalismo impresso, que começou nos anos 1990, quando cada vez mais a profissão do jornalista começou a ser precarizada. Essa precarização tem um efeito enorme no conteúdo. Um jornalista precário não pode se "dar ao luxo" de realmente pesquisar a fundo o que vai escrever, porque tem que escrever muito mais do que um jornalista com um emprego fixo. Além disso, o jornalismo está cada vez mais dependente de agências internacionais, o que torna os jornais quase todos iguais, inclusive na televisão. Há pouco investimento em jornalismo crítico e investigativo. Um dos pontos positivos da eleição do Trump foi que o jornalismo crítico nos Estados Unidos ganhou importância e há um grande investimento das redações e das emissoras neste sentido. Se será feito um investimento semelhante no Brasil e se ele dará certo, não dá para dizer, pois depende de leis que possam vir depois da posse de Bolsonaro.

E o que pode ser feito para evitar a propagação de notícias falsas?

Esse é um problema que o jornalismo não consegue resolver. É um problema social que só será resolvido com educação e com uma forma de lidar com redes sociais que consiga manter uma certa distância. No entanto, o jornalismo pode sim continuar o seu trabalho e oferecer boas matérias bem pesquisadas para aqueles que tenham interesse em se orientar. A vantagem é que no jornalismo há sempre uma instituição e pessoas que são responsáveis pelo conteúdo.

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