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HistóriaEuropa

Bálcãs mostram que islã também é parte da história da Europa

Claudia Mende
6 de setembro de 2024

Religião floresceu primeiro na Andaluzia antes de se espalhar até os Bálcãs sob o Império Otomano. Ali, muçulmanos, cristãos e judeus conviveram lado a lado, sedimentando tradição de tolerância e erudição.

Paisagem montanhosa em Pociteli, na Bósnia e Herzegovina, com uma mesquita em primeiro plano e, ao fundo, ruínas de uma antiga cidade medieval
A Mesquita Hajji Alija em Pociteli, na Bósnia e Herzegovina, data do século 14Foto: GTW/imageBROKER/picture alliance

Há mais de mil anos o islã está presente na Europa. Na Idade Média, a região de Andaluzia, no sul da Espanha, esteve por muito tempo sob sua influência. Mas foi nos países do sudeste europeu que a religião e a cultura islâmicas deixaram marcas profundas.

A identidade islâmica faz parte da Europa como o cristianismo e o judaísmo está presente nas sociedades do Oriente Médio e do Norte da África.

Isso é especialmente visível nos Bálcãs, aonde o islã chegou com a expansão do Império Otomano para o sudeste da Europa após 1453 e onde até hoje marca, em diferentes graus, países como Bósnia e Herzegovina, Albânia, Macedônia do Norte, Montenegro, Kosovo, Romênia e Bulgária.

Na Bósnia e Herzegovina, no Kosovo e na Albânia, muçulmanos são a maioria. Na Macedônia do Norte, perfazem um terço da população nativa. Muitos da etnia roma (grupo étnico minoritário ao qual as pessoas se referem, no Brasil, como ciganos) também seguem a religião.

Alhambra, na cidade espanhola de Granada, é símbolo do passado islâmico da AndaluziaFoto: Reinhard Kaufhold/picture alliance/dpa

A disseminação do islã nos Bálcãs foi um processo histórico complexo – não rápido ou violento, mas sim gradual, levando entre 100 e 150 anos, afirma o professor Mehmet Hacisalihoglu, da Universidade Ludwig-Maximilians em Munique. Os incentivos para a conversão ao islã eram mais de natureza econômica. Essa visão é hoje consenso entre pesquisadores.

Os otomanos não estavam primariamente interessados na expansão religiosa, e sim na extração de recursos dos países conquistados, como impostos e serviços, explica a professora emérita Gudrun Krämer no livro Geschichte des Islam (História do islã, em tradução literal).

Acima de tudo, os novos senhores estavam de olho nas terras e em ricas jazidas de ouro e prata para a produção de moedas. Conflitos tinham menos a ver com questões religiosas e mais com a luta dos povos subjugados por autonomia e preservação de suas identidades culturais.

Nacionalistas veem islã como parte de estratégia de dominação

No entanto, até hoje há controvérsias sobre a expansão do islã nos Bálcãs. A forma como esse período histórico é visto e interpretado não é mera questão acadêmica: é crucial para a convivência entre os diferentes grupos religiosos e étnicos nos Bálcãs atualmente, principalmente diante de nacionalistas que veem a expansão do islã como parte de uma estratégia política de dominação.

Hacisalihoglu, contudo, vê mudanças positivas, com uma visão mais realista sobre o Império Otomano e a disseminação do islã. "Hoje, livros escolares na Macedônia do Norte e também na Sérvia apresentam de forma mais fiel esse processo de islamização", exemplifica.

No caso da Macedônia do Norte, que se tornou um país independente em 1991, um acordo firmado em 2001 prevê a representação adequada da história do país e de sua minoria islâmica, sem exageros nacionalistas.

Oração na Mesquita Gazi-Husrev-Beg, em Sarajevo, no fim do mês do Ramadã em abril de 2024Foto: Armin Durgut/AP Photo/picture alliance

Pluralidade religiosa

O período otomano nos Bálcãs foi marcado por diversidade religiosa: cristãos católicos e ortodoxos, muçulmanos sunitas e judeus viviam lado a lado nas cidades. Os bairros eram em geral separados, mas as pessoas se encontravam na feira. Igrejas, sinagogas e mesquitas estavam muitas vezes a poucos metros de distância uma da outra – algo que é possível ver até hoje em Sófia, capital da Bulgária.

O chamado "sistema Millet" permitia uma "vida autônoma e independente" para todas as religiões, explica Hacisalihoglu.

"Os monoteístas não muçulmanos continuavam a desfrutar de um alto grau de autonomia dentro de uma ordem hierárquica dominada pelos muçulmanos sunitas", escreve Krämer.

Depois de 1870, a Rússia tentou tomar áreas nos Bálcãs, por razões que ainda são debatidas entre historiadores. O historiador britânico William Holt descreve esse processo como uma tentativa de "Reconquista nos Bálcãs", a exemplo do que fizeram os reinos cristãos da Península Ibérica ao expulsar os muçulmanos de terras que hoje pertencem a Portugal e Espanha. Outros especialistas atribuem a investida russa a razões políticas e econômicas.

A tentativa russa de tomada dos Bálcãs acabou falhando principalmente por causa do Império Austro-Húngaro. Em 1878, a Áustria ocupou a Bósnia e reconheceu oficialmente a comunidade muçulmana. Ali, a dinastia dos Habsburgo criou uma organização muçulmana a exemplo da igreja cristã austríaca e o cargo de reisu-l-ulema, liderança religiosa que até hoje segue sendo o maior representante dos muçulmanos bósnios.

Desde então, um Islã com um longo histórico de convivência com outras religiões e etnias em um Estado secular pôde se estabelecer na Bósnia.

Bósnia: islã em um país secular

Entre as particularidades da vida islâmica bósnia estão visões liberais sobre a proibição do álcool e a prática do jejum, bem como uma grande abertura para outras religiões e modos de vida.

A prática da poligamia, comum em alguns países árabes, praticamente não ganhou espaço na Bósnia. Diferentemente da Península Arábica ou do Egito, correntes islamistas e wahabitas eram praticamente desconhecidas nos Balcãs. Isso mudou com a Guerra da Bósnia (1992-1995), quando os muçulmanos, que se autodenominam bosníacos, foram perseguidos e mortos por nacionalistas sérvios e croatas, culminando no genocídio de Srebrenica.

A desintegração da Iugoslávia e a Guerra da Bósnia acentuaram as fronteiras entre etnias e religiões. Juridicamente, Estado e religião são separados em todos os países do Balcãs. Mas durante e após a guerra, a religião tornou-se um fator político e de identidade mais forte.

Mesmo assim, em comparação com o Oriente Médio ou as metrópoles da Europa Ocidental, as posturas liberais do islã nos Bálcãs e sua forte rede de relações sociais tornam essa vertente da religião mais resiliente contra tendências radicais e violentas.

Nicho de orações na Mesquita Et'hem Bej em Tirana, na AlbâniaFoto: Sergio Delle Vedove/Zoonar/picture alliance

As raízes da Europa também são islâmicas

Muçulmanos, cristãos e judeus convivem no sudeste europeu há séculos. Apesar disso, até hoje a Europa reluta em ver os muçulmanos dos Bálcãs como parte do continente. Eles seriam os "outros", de acordo com o autor britânico-paquistanês Tharik Hussain, que atribui essa visão ao fato de muitos muçulmanos na região terem vivido sob domínio otomano.

"Os otomanos eram vistos como inimigos da Europa cristã-ocidental, que deu origem à identidade europeia moderna", explica Hussain no livro Minarets in the Mountains: A Journey into Muslim Europe (Minaretes nas montanhas: uma jornada à Europa muçulmana, em tradução livre). "Essa identidade inclui também uma postura anti-muçulmana, que é parte do DNA da Europa."

Essa visão faz de "muçulmano" e "europeu" duas categorias identitárias mutuamente excludentes. Mas a história do islã nos Bálcãs mostra que as raízes da Europa são cristãs, judaicas e islâmicas.

Srebrenica: um genocídio no coração da Europa

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