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Babel, Deus, o mundo e tudo o mais

Augusto Valente24 de abril de 2003

Num esforço quase sobre-humano, uma exposição na capital cultural Graz explora – a partir do mito de Babel – a multiplicidade lingüística de nosso planeta. Um panóptico que inclui arqueologia, arquitetura e profecias.

O zigurate de Borsipa dá uma idéia da construção da Torre de BabelFoto: AP

A Torre de Babel é, em primeira linha, um símbolo da hibris, a arrogância humana diante das limitações da natureza. Ela é o excesso de autoconfiança que, na tragédia e no mito, leva o herói – Ícaro, Édipo, Prometeu – a desafiar a divindade, cometendo o erro fatídico que culminará em sua queda.

A história que conta o Livro do Gênese é bem conhecida: num passado bíblico, os homens sentiram-se suficientemente poderosos para alcançar os céus. Com esse fim, iniciaram a construção da maior torre jamais vista. Contudo, Deus interpretou o empreendimento como uma ofensa, punindo a humanidade com a multiplicidade das línguas. Privados de um meio de entendimento comum, os prepotentes construtores desistiram da obra, e a Torre de Babel (que significa "confusão") permaneceu inacabada.

Como é o caso de grande parte das passagens bíblicas, trata-se de uma parábola fantasiosa baseada numa verdade histórica: o megalomaníaco edifício existiu efetivamente, na Mesopotâmia, atual Iraque.

Em nossos dias há quem deseje ver uma relação profética entre a narrativa, os atentados de 11 de setembro de 2001 e a guerra no Iraque. Acreditar em teorias do gênero é, acima de tudo, questão de fé e de gosto. Porém qualquer semelhança entre Babel e as ascensões e quedas de nossa – e outras "grandes" – civilizações pode ser tudo, menos coincidência.

Mito e história

O Museu de História da Arte de Viena preparou uma exposição celebrando o ameaçador conto cautelar, em suas mais distintas facetas. Ela está instalada no Castelo Eggenberg, na capital cultural européia de 2003 Graz, na Áustria. Para tal, Willfried Seipel, o pai da idéia e diretor do museu, não hesitou em desafiar os limites do humanamente possível. Não apenas do ponto de vista organizacional (o âmbito temático coberto é gigantesco); o visitante também tem que estar preparado para um rigoroso desafio intelectual.

O próprio catálogo da A Torre de Babel - Origem e multiplicidade da língua e da escrita impõe uma prova de resistência – até física –, com seus quatro volumes, pesando quase nove quilos. A mostra divide-se em três seções. A primeira dedicada aos aspectos arqueológicos e históricos das representações pictóricas da torre. Começando com as ilustrações da Gênese do Mosteiro de Millstatt, do século 12, e outras imagens medievais e renascentistas – geralmente com cunho de advertência contra a soberba –, chegamos até a uma instalação contemporânea em forma de torre, Babel TV, de Patrick Mimran.

A pesquisa arqueológica ganha atualidade adicional pelo fato de a Torre de Babel histórica haver sido construída na Mesopotâmia. Sabe-se que se tratava de um zigurate, ou torre escalonada. Um exemplo deste tipo de arquitetura ainda existe em Borsipa, ao sul da Babilônia, e serviu de base para uma reconstrução especulativa da torre mítica. Isto nos lembra que, antes de ser parte do "eixo do mal" bushiano, o Iraque foi um berço da civilização, e ainda hoje é testemunho de um patrimônio cultural inestimável.

A confusão dos idiomas

Mas Babel é também uma primeira tentativa de responder questões que ocupam a lingüística e ciências afins até hoje. Por que falamos tantas línguas diferentes? De onde nasceu essa variedade desnorteante? Havia uma língua original comum?

As demais duas seções da exposição tratam do surgimento, desenvolvimento e pluralidade da comunicação verbal e escrita. Instalações acústicas e gráficas ilustram de forma sensorial essa riqueza, que atualmente abarca 6417 idiomas. O artista Christian Möller criou uma Floresta lingüística, onde 37 hastes de metal respondem ao toque com o som de um determinado idioma, transmitido via satélite.

Ludwig Lazarus, pai da língua internacional esperanto

A Torre de Babel segue com um exame dos requisitos neurológicos da fala e a abordagem de questões fonológicas e psicoacústicas. O visitante é confrontado com modelos lingüísticos históricos e atuais; a questão da língua original; as relações do idioma com sociedade, identidade e nação; as linguagens gestuais; música e poesia; os idiomas ameaçados de extinção; assim como com o reconhecimento e reprodução mecanizada da linguagem.

No fim da maratona ele haverá vivenciado tanto a linguagem dançada das abelhas, quanto o espectógrafo – um aparelho que permite visualizar processos fonéticos –, e aprendido criptografia, a Cabala, a cultura vinca, hieróglifos e a Pedra de Rosetta. Além de haver-se divertido com uma máquina de tradução capaz de traduzir uma frase dada em mais de cem idiomas.

A anti-Babel

A um passo da hibris intelectual, como se não bastasse a complexidade do mito de Babel, os organizadores da exposição decidiram contrapô-lo a uma outra passagem bíblica, o Mistério de Pentecostes (Atos 2, 1-13). Aqui, o aparecimento do Espírito Santo, em forma de línguas de fogo, permitiu aos apóstolos falarem em idiomas diversos, e se entenderem.

O pintor Juan Bautista Mauno, contemporâneo de El Greco, ilustrou esta visão de uma anti-Babel cristã num magnífico quadro. Emprestado pelo Museu do Prado de Madri, este pode ser admirado na igreja do Castelo Eggenberg, em meio a uma instalação espacial e sonora do grupo Collettiva Media.

Como elucida o catálogo de A Torre de Babel - Origem e multiplicidade da língua e da escrita, já em 1964 o filósofo Marshall McLuhan apresentara a tese de que esta "visão de entendimento e unidade mundiais" se cumpriria através da vitória dos novos meios eletrônicos de comunicação. E mais uma vez estamos diante de uma profecia: quem viver, verá.

A mostra irá até 5 de outubro de 2003.

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