Beethoven entre mito e homem: o grande mal entendido
Ramón Garcia-Ziemsen (av)
Ele era surdo, sempre mal-humorado, sem jeito com as mulheres. Uma imagem que se encaixa quase bem demais no ideal do artista romântico: solitário, sofredor, porém genial. Até que ponto é este o Beethoven verdadeiro?
Anúncio
Primeiro, ele jogou vários livros na cabeça de um criado; em seguida, uma poltrona. De arrependimento, nem sombra. "Só assim tive sossego o dia inteiro." E quando um príncipe opinou que em vez de três fagotes bastavam dois, ele respondeu: "Se Sua Alteza assim quer instrumentar, estou cagando". Empregados, a nobreza, seus editores: todos ouviam dele poucas e boas. Um dos biógrafos de Beethoven o intitulou "o gênio grosseiro".
"Van Beethoven, proprietário de cérebro"
A maioria das informações de que dispomos sobre Ludwig van Beethoven nos chegou através de sua correspondência e de seu diário. Ao contrário do contemporâneo Johann Wolfgang von Goethe, com quem não se dava bem.
Em suas cartas, fala da maldade das pessoas e das barreiras de classe que lhe impedem o contato com as damas de seu coração. Ele não se encenava como alma nobre e superior; nem mesmo os amigos eram poupados de seu senso crítico. Certa vez, seu irmão, que adquirira um imóvel, se assinou "Van Beethoven, proprietário de bens". Ludwig replicou: "Van Beethoven, proprietário de cérebro".
Ao príncipe Lichnovsky, um de seus patronos e mecenas, escreveu: "Príncipe, o que vós sois, o sois por acaso e nascimento; o que sou, sou através de mim. Príncipes houve e ainda haverá aos milhares; Beethoven, só há um."
Beethoven para todos
As cartas de Beethoven e seu diário são como uma pedreira, da qual cada um, afinal de contas, acaba retirando aquilo de que necessita no momento. Determinadas declarações suas denotam uma atitude revolucionária; outras, uma postura elitista.
Este fato, acoplado a sua estética musical inovadora, levou a tentativas de recrutamento aposteriori, em parte, absurdas. A Nona sinfonia sublinhou, em 1937, o aniversário de Adolf Hitler. Também a notícia da morte do ditador foi acompanhada, no rádio, pela mesma obra beethoveniana.
Porém, mesmo antes, durante a República de Weimar, Beethoven já era instrumentalizado politicamente. A direita acentuava sua suposta francofobia e via nele uma "titânica natureza guerreira". A esquerda equiparava o caráter revolucionário de sua música a seu efeito político.
Um uso que se prolongou durante a antiga República Democrática Alemã. Após a Segunda Guerra Mundial, o compositor foi recrutado a serviço do regime comunista: Beethoven como guerreiro pela paz mundial.
Anúncio
Músico temperamental?
Contudo, é totalmente fora de propósito procurar no próprio Beethoven metas políticas concretas. Suas declarações são díspares demais para permitir tal coisa. Ele estava apenas preocupado com os novos caminhos da música – caminhos, aliás, que lhe traziam polpuda recompensa financeira.
Beethoven era conhecido por seu instinto para negócios. Entretanto, vivia numa casa em péssimo estado, nos arredores de Viena, e pouco ligava para a própria aparência. Para seus contemporâneos, devia parecer absolutamente anticonvencional.
Ele permaneceu solteiro, vivendo para sua música: de manhã, compor; ao meio-dia, comer bem; à tarde, passear. Na percepção de muitos, ficou gravada até hoje a imagem do artista excepcional, porém difícil do ponto de vista humano. Ela é reforçada pelas centenas de quadros e bustos de um homem sisudo, de cabelos em alvoroço e olhar penetrante.
Contudo, muitas vezes a posteridade esquece até que ponto essa rispidez se devia à grande tragédia da vida de Beethoven: sua surdez.
Deficiência torturante
Ludwig van Beethoven tinha pouco mais de 30 anos quando ficou óbvia a impossibilidade de esconder sua progressiva deficiência auditiva. Um músico surdo?
"Meus ouvidos ribombam dia e noite sem parar", escreve. O compositor pensa em suicídio, se afasta dos outros seres humanos. Chega a redigir uma carta de despedida, que, no entanto, não envia. Nela se encontra uma das mais conhecidas frases de Beethoven sobre si mesmo:
"Oh, homens, que me considerais hostil, intratável e misantropo, que injustiça cometeis comigo."
A vida de Beethoven em fotos
Conheça algumas etapas da vida do grande compositor alemão nascido em Bonn.
Foto: GNU, CC-RobertG-SA
Beethoven com 13 anos
Esta pintura de Beethoven aos 13 anos é o mais antigo retrato autêntico do compositor. Seu primeiro professor de música foi o pai, Johann van Beethoven, que era alcoólatra e por vezes tratava o filho de maneira muito rude. Mesmo assim, seu talento foi reconhecido logo cedo. Com 13 anos, Ludwig já havia publicado três sonatas para piano e tocava também cravo e viola regularmente na corte de Bonn.
Foto: GNU, CC-RobertG-SA
Beethoven e Goethe encontram a família real em 1812
Este quadro retrata o "incidente de Teplitz". Ao lado de Johann Wolfgang von Goethe (à esq., no fundo) em 1812, Beethoven se recusou a curvar-se diante da família imperial. Beethoven tinha grandes expectativas em relação a seu primeiro encontro com Goethe. Porém o poeta descreveu o compositor como "muito introvertido". Neste momento de sua vida, Beethoven estava conturbado e pouco compunha.
Foto: Wikipedia public domain
Prédio onde Beethoven concluiu a Nona Sinfonia
Beethoven acabou sua famosa Nona Sinfonia em 1824, quando vivia neste prédio da rua Ungargasse, em Viena. Neste período, ele cuidava do sobrinho Karl, que ficara sob sua tutela após a morte do irmão do compositor. O relacionamento entre o garoto e seu tutor era difícil, e em 1826 Karl tentou o suicídio. Beethoven ficou arrasado.
Foto: GNU / Wikipedia / Pressemappe
A Casa de Beethoven
Ludwig van Beethoven nasceu nesta pequena casa em Bonn, em dezembro de 1770, e lá viveu até 1792, quando se mudou para Viena. A Beethovenhaus é agora um museu com grande coleção de manuscritos, instrumentos e outros objetos pertencentes ao famoso compositor.
Foto: picture-alliance/dpa
Heiligenstadt: a Probusgasse em 1898
Em 1802, pouco após começar a perder a audição, o compositor mudou-se para Heiligenstadt, nos arredores de Viena. Esta foto, tirada em 1898, mostra uma rua principal da cidade. Durante essa estadia, Beethoven redigiu o famoso 'Testamento de Heiligenstadt', uma carta aos irmãos Johann e Carl, jamais enviada. O documento expressa sua luta contra a progressiva perda da audição.
O último piano de Beethoven
Beethoven aprendeu a tocar piano ainda criança, e compôs numerosas sonatas, concertos e outras obras para o instrumento. Beethoven era fascinado pelo Iluminismo e pelo novo movimento romântico da Europa. Sua música é revolucionária e foi decisiva na transição do estilo musical do Classicismo para o Romantismo.
Foto: picture-alliance/akg-images
O crânio de Ludwig van Beethoven
Esta reprodução do crânio de Beethoven encontra-se no Centro para Estudos sobre Beethoven da Universidade de San José, Califórnia. O crânio foi doado ao centro por um executivo californiano descendente do médico vienense Romeo Seligmann. Este recebera secretamente fragmentos do crânio de Beethoven em 1863, quando os restos do compositor foram exumados.
Foto: AP
Ludwig van Beethoven em 1803
Em 1792, Beethoven mudou-se para Viena, onde estudou com diversos mestres. O jovem compositor tinha esperanças de conhecer Mozart, contudo chegou à cidade um ano após sua morte. Embora Beethoven fosse visto como virtuose, seus mecenas muitas vezes não o financiavam de modo suficiente, e ele contraiu grandes dívidas.
Foto: Christian Hornemann / Wikipedia
La Redoute
Beethoven estudou sob a tutela do famoso compositor Joseph Haydn. As aulas foram combinadas durante um encontro entre os dois músicos no salão La Redoute, que ainda hoje é palco de bailes e concertos. Consta que a ópera de Mozart "A Flauta Mágica" teve uma de suas primeiras apresentações neste local. O prédio em estilo clássico está localizado em Bad Godesberg, perto de Bonn.
Foto: Presseamt Bundesstadt Bonn
Manuscrito da Nona Sinfonia
A Nona Sinfonia é provavelmente a obra mais famosa de Beethoven, tendo-se tornado o hino da União Europeia. Consta que, ao reger a estreia desta obra, a surdez do compositor era tão completa que alguém teve que girá-lo em direção à plateia para que ele percebesse o aplauso entusiástico. Diz-se que Beethoven chorou, ao perceber que não ouvia nada.
Foto: picture-alliance/dpa/dpaweb
O funeral de Beethoven, por Franz Stober
Beethoven morreu em 26 de março de 1827, de um mal que lhe atacou o fígado e os intestinos. Esta pintura de Franz Stober mostra seu funeral no dia 29 de março, em Viena. Conta-se que cerca de 20 mil pessoas compareceram à cerimônia.
Aparelho de surdez sob medida
Beethoven começou a perder a audição em 1795. Em 1808, sua deficiência estava agravada, e 10 anos depois ele estava completamente surdo. Esta "trombeta auditiva" foi especialmente criada para ele pelo amigo Johann Maelzel, um inventor vienense. Beethoven usava cadernos para se comunicar por escrito. Apesar de a surdez não tê-lo impedido de compor, o diálogo com outras pessoas era muito difícil.