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Bernardo Carvalho

30 de agosto de 2011

Um dos principais escritores da literatura brasileira contemporânea está passando uma temporada em Berlim. Em entrevista à Deutsche Welle, Bernardo Carvalho fala sobre sua obra e conta como é viver na cidade.

"Para mim, literatura é uma forma de você escapar de si mesmo", diz BernardoFoto: Adriana Vichi

Escapar de si mesmo foi a maneira que o escritor brasileiro Bernardo Carvalho encontrou para viver e criar. Na última década ele esteve em aldeias indígenas, no Japão, na Rússia, na Itália, no Acre e na Mongólia. Agora está em Berlim. Nesse período, viveu, questionou e escreveu seus melhores romances. Ser estranho e estrangeiro fez de Bernardo um dos mais conceituados escritores brasileiros deste novo século.

Numa espécie de jogo com o leitor e consigo mesmo, os romances de Bernardo são como uma espiral onde a realidade e a ficção são apresentadas como algo simples, mas se revelam um complexo jogo que transforma o leitor em coautor da obra. Em conversa com a Deutsche Welle, Bernardo mostrou como sua literatura tenta bater de frente com a vulgaridade e a ignorância que imperam no mundo em que vivemos.

Deutsche Welle: Qual foi a obra ou escritor que te despertou para a literatura?

Bernardo Carvalho: Originalmente eu queria fazer cinema e não deu certo. Precisava ganhar a vida e comecei a trabalhar em jornal. Percebi que o que me interessava em cinema era a narrativa e que tenho dificuldade em trabalhar em equipe.

Eu sempre li, mas tudo mudou quando eu descobri a obra do austríaco Thomas Bernhard. Ele é um escritor muito peculiar e com um estilo muito forte. Foi menos uma influência e mais um entendimento que, para ser escritor, você precisa aprender a transformar seus defeitos em qualidade. A prosa dele era sua doença. Isso é o interessante na arte e na literatura, transformar o que te disseram que é errado na tua maior virtude.  

Como foi a passagem do jornalismo para a literatura?

Eu nunca quis ser jornalista. Fui me moldando para ser jornalista por questões financeiras. Sempre tive a tendência para a narrativa ficcional. Paralelamente ao  jornal, eu escrevia o primeiro parágrafo de romances. Acumulei centenas deles.

Era correspondente para a Folha de S.Paulo na época do governo Collor. Com a crise, fecharam o escritório de Nova York. Meu apartamento já estava pago por mais seis meses, resolvi ficar na cidade. Selecionei onze dos primeiros parágrafos e os transformei em contos, que se tornaram meu primeiro livro, Aberração (1993).  Depois disso passei a escrever e a publicar com mais frequência. 

É possível viver de literatura no Brasil?

Não sou dos que vendem mais ou menos, mas na média não dá para viver. Eu tenho que fazer coisas paralelas. O livro acaba contando como algo a mais.

Como surgiu a ideia de transformar a história de Buell Quain no romance Nove Noites (2002)?

O livro foi escrito num momento em que eu estava muito irritado com essa ideia de que a ficção vale menos do que os livros baseados em histórias reais, o que é uma tendência muito forte no mundo todo. A literatura estava se tornando restrita e elitista.

Um dia, li no jornal uma resenha sobre um livro de correspondências de um antropólogo alemão que havia sido assassinado pelos índios no Brasil em meados do século 20. A resenha citava também Quain, antropólogo americano de 27 anos que havia se suicidado no Brasil em 1939. Aquilo me despertou: eu fiquei obcecado por aquele suicida e comecei a pesquisar. 

Você nunca vai descobrir o que leva um suicida a se matar. Esse é o princípio do suicídio. O que me interessou na história é que ela é insolúvel. Era uma pesquisa detetivesca para a qual eu já sabia que não haveria resposta. Chegou um ponto em que eu empaquei e não tinha mais para onde ir e a ficção aflorou. Procuro com os meus livros celebrar a subjetividade, a imaginação e não estar confinado ao funcionalismo da realidade. No livro, a realidade é para o leitor como uma armadilha ou um jogo. Uma espécie de simulacro da realidade. 

"Procuro celebrar a subjetividade, a imaginação e não estar confinado ao funcionalismo da realidade"Foto: Bel Pedrosa

Seus livros Mongólia (2003) e O filho da mãe (2009) foram encomendados e escritos na Mongólia e na Rússia. Você escolheu os destinos? Como foi a experiência?

Em Mongólia, eu havia expressado ao meu editor português minha vontade de conhecer o deserto de Gobi. A editora dele tinha um acordo com a Fundação Oriente para criar uma coleção de livros. Ele sugeriu meu nome e eu fui para a Mongólia escrever um livro. Ele pegou minha vontade e transformou num projeto. A única regra era que o livro tinha que se passar no país. 

O filho da mãe foi quase a mesma coisa. O [escritor] João Paulo Cuenca me perguntou se eu queria passar um mês em São Petersburgo com tudo pago e fazer um livro. Era parte de um projeto chamado Amores Expressos e tinha que ser uma história de amor. Não sei qual foi o critério, mas topei na hora.

Você procura nesses lugares um paralelo com o Brasil?

Não, mas acho que isso acaba acontecendo naturalmente porque eu sou brasileiro, embora queira escapar do Brasil e de quem eu sou o tempo todo. Para mim, literatura é uma forma de você escapar de si mesmo.

Por mais que eu viaje, o Brasil me persegue. Na Mongólia percebi que, depois de 70 anos de comunismo, a liberdade virou sinônimo de religião. Aos poucos, o país estava se tornando uma teocracia. Isso me lembra muito o Brasil evangélico. 

Como foi construir personagens estrangeiros em O filho da mãe? Estar num país estrangeiro funcionou como um laboratório?

Na Rússia, não me sentia à vontade para escrever sobre gente que eu não conheço. Para me identificar com os personagens, decidi que de algum modo seriam outsiders. Um é um desertor do Exército russo e o outro é refugiado da Chechênia. Assim consegui me sentir na pele deles.

Por estar lá, estava imerso na experiência. Fui assaltado no meu terceiro dia na Rússia. Passei um mês numa espécie de pânico, uma vulnerabilidade absoluta.

O limite entre a realidade e a ficção em seus livros é claro para você desde o principio?

É consciente. Meus livros são a consequência de algo que já existia, e que talvez eu nem tivesse tanta consciência antes de escrever. Hoje há uma espécie de confusão entre ficção e realidade que é muito perturbadora. Fico impressionado com a vulgaridade do Brasil. Na internet não há distinção entre notícias sobre celebridades da TV e assuntos importantes, como a guerra. É um culto à ignorância e à grosseria em nome do comércio. Meus livros tentam ser um antídoto a essa mentalidade, pois demandam esforço. O leitor é ativo e funciona como o cocriador da obra.

A internet banalizou a escrita? Qual é o papel da literatura nesse contexto?

O interesse das grandes corporações de internet é banalizar a escrita, acabar com a hierarquia e dizer que há uma democracia nas artes. O usuário tem a ilusão que é autor e que sua vida privada é obra, é importante que a literatura e a arte como exceção acabem. Muitos curadores hoje falam da importância da obra de arte como serviço comunitário. Querem eliminar o indivíduo. Politicamente a literatura tem que ir contra esse fluxo e criar as coisas mais estranhas possíveis. Precisamos estabelecer uma hierarquia da qualidade contra a quantidade. Na internet, o que conta é o número de acessos. É o mundo da opinião contra a filosofia, a crítica e a exceção.  

Como você vê a literatura brasileira hoje? Você tem afinidade com algum escritor?

Eu não tenho muita, não. Tento escapar de uma identidade nacional e acabei lendo pouca literatura brasileira. Caso essa identidade realmente exista, vai me bloquear profundamente. Escrever é algo muito frágil, e não é fácil tentar o tempo inteiro ser uma exceção.

Quando entro em contato com algo sensacional, eu me manifesto. Aconteceu quando li André Santana. Seu primeiro livro era estranhíssimo e sensacional, fazia bem para a literatura brasileira. Tem muita coisa hoje sendo publicada no Brasil. Se são boas ou não, eu não sei.    

Como surgiu o convite para vir a Berlim?

Quando vim para cá promover O sol se põe em São Paulo (2007), as pessoas falavam que eu deveria me candidatar para a bolsa do DAAD, serviço que promove o intercâmbio cultural entre Brasil e Alemanha. Nunca tinha pensado em vir para cá. Apresentei um projeto e fui selecionado.

Você está trabalhando num novo romance?

Estou. Vim para cá com alguns projetos na manga. Além do que eu havia apresentado, tinha mais dois projetos que não tinham nada a ver com Berlim. Conforme fui me interessando pela cidade, um deles começou a tomar corpo. O livro não se passava na Alemanha, agora parte dele se passa em Berlim Oriental durante a época do Muro. Não sei ainda onde vai dar, mas está caminhando.  

Como é viver em Berlim?

É uma cidade ótima porque é muito tranquila, calma, segura e não exige nada de você. A convivência entre o lado provinciano e cosmopolita é algo muito peculiar. Nunca tinha vivido numa cidade assim. Para mim é como se eu estivesse fora do mundo.

Entrevista: Marco Sanchez
Revisão: Alexandre Schossler

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