Bibliothek: Dos erros de português aos erros de alemão
Ricardo Domeneck
29 de agosto de 2017
Assim como fazem estrangeiros no Brasil, o colunista Ricardo Domeneck se "embananava" com masculinos e femininos ao se mudar para a Alemanha. Ele conta que levou tempo para aprender sutilezas do idioma.
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Em todos estes anos vivendo em Berlim, minha experiência tem sido positiva na relação com os alemães ao esbarrar nas dificuldades de sua língua. Eu diria que, em geral, os alemães – assim como os brasileiros – tendem a tratar com simpatia os estrangeiros que se esforçam em aprender a língua do país, ao contrário de outros lugares onde já tive a sensação de que erros de gramática são ouvidos quase como se fossem confissões de crimes. É claro que no princípio cometemos erros engraçados.
Os mais comuns serão os de troca de gênero. Lembram-se da novela Rainha da Sucata, de 1990? Nela, a atriz Aracy Balabanian interpreta uma senhora armênia vivendo há anos no Brasil, mas ainda com alguns problemas em seu domínio da língua portuguesa. Sua frase mais conhecida, ameaçando a personagem interpretada por Regina Duarte, era de que colocaria certo prédio "na chão!".
É assim que eu soava por vezes aqui na Alemanha, me embananando bem brasileiramente com masculinos e femininos, feito o Sol masculino no Brasil e feminino na Alemanha, ou nosso querido satélite, Lua, que é feminina no Brasil e masculina na Alemanha. São apenas dois exemplos, e nem trago para cá o número de entidades neutras que se tornaram femininas ou masculinas na ponta da minha língua.
Alguns erros meus ficaram para sempre na história do meu círculo de amizades. Certa vez, conversando com uma amiga, ela me disse que uma conhecida nossa estava sofrendo de algo... algo que eu entendi ser "Liebeskoma", ou seja, "coma de amor". Ela estava em estado de coma amoroso! Para um brasileiro que tende ao melodramático, aquilo me parecia uma expressão maravilhosa. Estar em coma amoroso! Quantas vezes eu me senti em estado de coma amoroso!
Pois bem, não era exatamente isso. Ela estava sofrendo de "Liebeskummer", não de "Liesbekoma". Seu amor lhe causava sofrimento, preocupação, e não estava em estado de coma. É claro que os alemães não seriam assim tão dramáticos, apenas ligeiramente clínicos.
Nem sempre os alemães são bons em corrigir seus erros. Um exemplo: eu passei anos respondendo "gleicherweise" quando me desejavam um bom dia na padaria ou na quitanda. Parecia-me correto e gramaticalmente lógico, já que o sufixo "-weise" é usado para fazer vários advérbios em alemão. Não estava de todo errado, mas não era o termo apropriado. Devo ter usado a palavra por anos, até que alguém me corrigiu, dizendo que o certo neste caso específico era "gleichfalls".
Há a palavra "gleicherweise”, mas o uso é menos coloquial. Essas sutilezas levam tempo para aprender, assim como o que é apropriado dizer ou perguntar em determinadas ocasiões. Por exemplo, a forma como os alemães revelam salários e preços de aluguel em conversas de uma forma estranha para um brasileiro.
Estou há 15 anos na Alemanha. Levou muito tempo para que eu conseguisse falar a língua destas plagas sem a sensação de estar fazendo esforços mentais exaustivos, ou sem me sentir falando feito criança. No ano passado, escrevi pela primeira vez um texto mais sério em alemão, para uma homenagem a Hubert Fichte organizada pela Haus der Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo). Foi uma sensação de chegada ao país, depois de tanto tempo.
As diferenças de temperamento continuam, no entanto. Não importa quanto tempo eu viva aqui, os alemães continuarão tendo suas preocupações de amor, e eu continuarei entrando de vez em quando em estado de coma amoroso.
Na coluna Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.
Alemão e as palavras compostas: da filosofia à mesquinharia
Afirmar que "só se pode filosofar em alemão" é comprar polêmica certa. Contudo, é inegável: o idioma permite sintetizar conceitos complexos de forma extremamente específica e concisa. E também ser genialmente maldoso.
Foto: Reuters/F. Bensch
Weltschmerz
O sofrimento pode ser mesquinho ou altruísta, mas nenhuma de suas formas é tão filosoficamente abrangente quanto a "Weltschmerz" ("dor do mundo"). Cunhado pelo escritor Jean Paul, o conceito diagnostica o pessimismo típico do movimento romântico, uma insatisfação crônica e insolúvel com a condição humana. Um sentimento que parece estar novamente em alta, nos últimos anos.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Schönherr
Luftschloss
Há quem reaja ao pessimismo construindo castelos nas nuvens: "Luftschloss" ("castelo de ar") significa devaneio, fantasia. Na Alemanha do século 16, "construir um castelo no ar" equivalia a ficar sentado no telhado e sonhar. Para o autor americano Jerome Lawrence, aliás, "neurótico é quem constrói um castelo no ar; psicótico é quem mora dentro; psiquiatra é quem recebe o aluguel".
Foto: Fotolia/crimson
Verschlimmbessern
Na política, urbanismo, artes, medidas sociais ou cirurgia plástica, por vezes a emenda é pior do que o soneto. Ativismo cego, associado a ignorância e incompetência, pode acarretar resultados tragicamente agravantes. Em alemão, o paradoxal termo composto "Verschlimmbessern" ("melhorar piorando") resume esse tipo de boas intenções – das quais, dizem, o inferno está tão cheio.
Foto: MEHR
Futterneid
"Inveja da comida" é observada entre cães: mesmo satisfeito, o animal avança sobre a ração alheia assim que vê um companheiro se alimentar. Contudo, só descobrir que se quer algo quando outro mostra interesse pelo mesmo objeto do desejo também é um defeito demasiado humano. Basta pensar na "Futterneid" de consumidores se digladiando durante uma liquidação. Ou em certas disputas amorosas.
Foto: imago/MITO
Kummerspeck
Você fica deprimido. Para compensar, passa a comer sem controle. Engorda. Todo mundo nota. Os alemães são capazes de exprimir essa cadeia de ocorrências – a materialização da tristeza em tecido adiposo – numa única palavra: "Kummerspeck" ("banha de aflição"). Um diagnóstico que já vem acompanhado do possível antídoto: uma dose de bom humor e autoironia.
Foto: Colourbox/S. Jarry
Backpfeifengesicht
É injusto, até irracional, mas quem não conhece a sensação? Certas pessoas simplesmente despertam um inexplicável impulso de agressão. Uma petulância, um excesso de autossuficiência... Ou talvez elas tenham mesmo "cara de levar tapa". Entre a intenção e o ato, porém, é bom lembrar que a questão é subjetiva, e o simpático rosto de uns pode ser a "Backpfeifengesicht" perfeita para outros.
Foto: picture-alliance/AP Photo/E. Vucci
Schadenfreude
Certos termos da língua alemã são considerados intraduzíveis também por revelar realidades que o resto do mundo prefere negar. "Schadenfreude" (literalmente "alegria pelo dano") indica o prazer malicioso com a desgraça alheia. "Quem, eu? Jamais!" Um sentimento quase inconfessável, até por se originar, tantas vezes, em inveja, mesquinharia e egoísmo.
Foto: Reuters/F. Bensch
Fremdschämen
No extremo oposto das emoções complexas, o neologismo "Fremdschämen" ("vergonha alheia") denota uma forma especial de empatia. Incluído nos dicionários em 2009 e eleito palavra do ano na Áustria no ano seguinte, indica aquele constrangimento por tabela, ao se presenciar outra pessoa numa situação embaraçosa. Mas: já que vergonha é um artigo tão escasso, não seria melhor gastá-la consigo mesmo?
Apanhado/a com a mão na cumbuca: usando o sapato preferido da irmã; recebendo suborno da multinacional! "Mas não é nada do que vocês estão pensando..." Esse tipo de aperto tem um nome específico em alemão: "Erklärungsnot" – "necessidade de explicação" ou "apuros explicativos". Ou seja: agora a batata quente está na mão do infrator.
Foto: DW
Treppenwitz
Nada como uma boa anedota para animar uma festa e conquistar simpatias, e você acaba de ter a genial inspiração para uma... só que uns minutos tarde demais, sua oportunidade passou. É uma típica "Treppenwitz" ("piada de escadaria"), expressão originada diretamente do francês "esprit d'escalier", aquele comentário espirituoso que só ocorre ao convidado quando ele já vai descendo as escadas.