Autor nascido em 1883 é considerado o mais influente escritor da língua alemã do século 20. Com seus textos sobre o absurdo da existência humana, poucos representantes da literatura moderna permanecem tão atuais.
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Nesta segunda-feira (03/07), faria aniversário aquele que pode ser chamado de o mais influente escritor de língua alemã do século 20: Franz Kafka. Também é certo que tal escolha pode ser questionada. E ele sabia que uma decisão dessas passaria por alguns canais burocráticos insondáveis. Quem toma as decisões finais por aqui?
Kafka era um rapaz franzino que sequer nasceu no país que deu nome à língua, a Alemanha e o alemão. Nascido em Praga em 1883, capital do Reino da Boêmia e então parte do Império Austro-Húngaro, o que era o senhor Kafka? Que nacionalidade tinha, ou tem em nossas mentes hoje? Talvez a ele se aplique de verdade o que disse Fernando Pessoa, seu contemporâneo, que sua pátria era sua língua?
Era um funcionário da minoria judia, que escrevia seus contos e romances em forma de parábola. Formado em Direito, trabalhava para um companhia de seguros. Escrevia quando podia. Ao morrer, em decorrência da tuberculose com apenas 40 anos de idade, é já lendária a história de que pediu ao amigo Max Brod que queimasse seus romances, que considerava inacabados. O amigo não acatou seu desejo, e a literatura jamais foi exatamente a mesma.
Seu nome virou adjetivo. Hoje chamamos certos trabalhos ou mesmo situações de kafkianas. Quando o li pela primeira vez ainda adolescente, comecei por aquele trabalho mais famoso, que se tornou quase uma parábola moderna, como se fosse parte do nosso folclore moderno: A Metamorfose. Que experiência desorientadora.
Apenas lendo este e outros dos seus textos mais curtos, comecei a perceber o que queriam dizer com aquelas histórias e opiniões apaixonadas sobre a escrita do senhor Kafka. A atmosfera de sonho. Ou de pesadelo, é claro. A forma como descrevia o que parecia absurdo com a falta de espanto de quem sabe que nada, nessa vida, é realmente mais absurdo do que a própria vida. Estarmos aqui. Para quê? A serviço de quem? E governados por quais leis?
Kafka seria um escritor de histórias de terror se não as contasse com aquela linguagem sem ênfase, sem espanto, como quem descreve seu café da manhã. Um homem acorda em sua cama no corpo de um inseto? Acontece. Um homem é preso em sua casa ao acordar pela manhã sem saber exatamente o que havia feito de errado? Acontece. Estes dois textos sempre me deram a sensação de que para Kafka o pesadelo começava ao acordarmos. Ainda que não se tenha tido sonhos tranquilos durante a noite. Pesadelos, dormindo ou acordado.
É impossível imaginar o que teria sido da literatura moderna se não nos tivessem chegado esses livros. Quantos escritores permanecem tão atuais quanto o senhor Kafka? O menos datado de todos os modernos. Sua linguagem cristalina, suas histórias tenebrosas. Poucos escritores parecem seguir descrevendo tão bem nossa existência moderna. Ou talvez a existência em qualquer tempo.
Ontem seria aniversário deste homem que morreu aos 40 anos. Hoje completo 40 anos eu próprio. Quanto mudou desde sua morte nesta nossa existência sem respostas? Talvez nada. Posso apenas agradecer ao senhor Kafka por ter feito tanto por nós em seus 40 anos. Não nos deu respostas. Talvez tenha ensinado que não faz sentido fazer certas perguntas.
Na coluna Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.
De Praga para o mundo
Na época de Kafka Praga era um centro cultural da Europa. A cidade e seus habitantes marcaram o autor, psicológica e intelectualmente. Lá ele sofreu e escreveu. Mas a partir dela também conquistou reconhecimento mundial.
Foto: picture-alliance/dpa
O poeta: Franz Kafka
Nascido em 3 de julho de 1883 em Praga, o autor Franz Kafka tinha como principal característica uma sensibilidade espantosa. Ele absorveu a atmosfera da metrópole, nela conheceu o medo e o amor, e desenvolveu sua percepção dos aspectos absurdos da modernidade. Nela ele encontrou gente e livros que o marcaram. E aqui também viveram muitos que ele, por sua vez, influenciou.
Foto: picture-alliance/dpa
A obra: A metamorfose
Um homem acorda de manhã e se vê transformado num inseto gigantesco e repulsivo. É o fim de sua existência como membro da sociedade: ele perde o trabalho, mesmo sua família o repudia. Psicologicamente, Gregor Samsa não mudou nada. Assim, a grande questão de "A metamorfose" é: o que constitui a humanidade de um ser humano?
Foto: public domain
A culpa inexplicável: O processo
Certo dia Josef K. é intimado a se apresentar diante da corte penal. Mas qual foi seu crime? Ele não tem ideia. Certo é que as engrenagens da Justiça começaram a girar. Ele é lançado de uma instância à outra, sem esperanças, sem conhecer o motivo. E assim vivencia quão onipotente é o Estado – e quão insignificante ele é, como ser humano. (Cena do filme "O processo", de Orson Welles, 1962)
Foto: Studiocanal
O medo sem nome: O castelo
O agrimensor K. espera permissão para entrar num certo castelo rural. Embora seus pedidos sejam repetidamente recusados, ele pode permanecer na vila pertencente ao senhor do castelo. Mas por que seus habitantes têm tanto medo deste, embora ele não lhes faça nenhum mal? O romance estuda a psicologia do medo. (Foto: "O castelo", em montagem do Deutsches Theater)
Foto: picture-alliance/dpa
O cenário: Praga
Na época em que viveu Kafka, Praga era um centro cultural da Europa. Importante parte do reino dos Habsburgos, por volta de 1900 era uma metrópole cosmopolita e multicultural, e meca da literatura dos idiomas alemão e tcheco. Assim como Kafka, muitos autores dominavam ambas as línguas. Praga e seus habitantes influenciaram decisivamente o poeta, do ponto de vista psicológico e intelectual.
Foto: picture-alliance/akg-images
O "über-pai": Hermann Kafka
Herman Kafka (1852-1931) era um homem imponente – estatura avantajada, possante, seguro de si. Abatedor de profissão, dentro da família de judeus asquenazi, sua palavra era lei. Na famosa "Carta ao pai", de 1919, Franz Kafka resume seus anos de infância: "Eu, magrelo, fraco, tu, forte, grande, largo". Mas o autor se vinga: em suas obras, os homens fortes são rebaixados a meras caricaturas.
Foto: picture-alliance/akg-images
O fundador do Estado judaico: Theodor Herzl
Na Boêmia, nacionalistas exaltados se reuniam com frequência crescente em arruaças antissemitas. Assim, também judeus não religiosos como Franz Kafka começaram a simpatizar com a ideia de Theodor Herzl (1860-1904) de um Estado judeu na Palestina. Kafka considera uma viagem à região, mas é forçado a desistir, por motivos de saúde. Em compensação, em seus últimos anos de vida ele aprende hebraico.
Foto: public domain
O amigo: Franz Werfel
Longas tardes às margens do Moldávia, longas noites nos cafés de Praga: com o amigo Franz Werfel (1890-1945) Kafka saboreia os encantos da metrópole. Embora pouco mais velho, Werfel já é um astro literário. E Kafka não está acima dos sentimentos de inveja: "Odeio W.", anota, "Ele é saudável, jovem e rico, eu sou o contrário disso tudo". E, no entanto, ambos mantêm a amizade.
Foto: picture-alliance/akg-images
O filósofo: Friedrich Nietzsche
Em meados do ano 1900, Kafka está como que paralisado pelos escritos de Nietzsche: "E quando desta cinza a brasa se erguer, brilhante e ardente, e tu a fixares, então..." O quê? Kafka está incapacitado de escrever: a impressão deixada pela arte nietzscheana é forte demais. A arrogância diante da Igreja e do Estado, a mediocridade intelectual burguesa: eles também passarão a ser temas kafkianos.
Foto: Getty Images
A noiva: Felice Bauer
"Nariz fino quase quebrado. Cabelo louro, meio duro, sem brilho, queixo forte." Assim Kafka descreve Felice Bauer após o primeiro encontro, em 1912. No entanto ela o fascina: ambos se escreverão 500 cartas. Por duas vezes contraem noivado, por duas vezes ele rompe o contrato de casamento. Felice se muda para os Estados Unidos – bem longe do poeta que, durante cinco anos, lhe roubara o coração.
Foto: picture-alliance/maxppp
O irmão espiritual: Søren Kierkegaard
Em seus primeiros anos de vida, o dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855) viu numerosos de seus parentes morrerem de diferentes moléstias. Isso se reflete em sua sombria filosofia. Kafka anota em 1913, fascinado: "Como eu intuía, seu caso é muito semelhante ao meu, apesar de diferenças essenciais". A comparação se aplica à vida afetiva: também Kierkegaard teve um amor infeliz.
Foto: picture-alliance/akg
O médico de almas: Sigmund Freud
O ego é fraco. Ele não é senhor nem mesmo dentro da própria casa. "Freud nos faz ler coisas inauditas", anotava Kafka em 1912. O poeta respeitava as descobertas do neurologista, as quais coincidiam diretamente com suas vivências pessoais. Mas os seres humanos teriam cura? Kafka era cético: apesar dos resultados promissores da moderna psicologia, "nada aconteceu de verdade", comentou.
Foto: Hans Casparius/Hulton Archive/Getty Images
O editor: Kurt Wolff
Kurt Wolff era um editor dedicado, que reunia em torno de si os jovens talentos da época. Mas Kafka era um caso difícil: em 1912, publicou seu primeiro volume de contos, numa tiragem de 800 exemplares. As vendas se arrastaram. "Onze livros foram vendidos", escrevia o autor algumas semanas após o lançamento. "Dez fui eu que comprei. Queria saber quem foi o décimo-primeiro."
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O mentor: Max Brod
Kafka duvidava de si. Por muitas vezes foi o amigo e colega Max Brod (1884-1968) a lhe insuflar ânimo. No entanto, em 1924, ano de sua morte, Kafka determina que todos os seus manuscritos devem ser postumamente queimados. Brod decide desrespeitar o testamento. Em vez disso, publica os escritos, salvando assim uma das mais significativas obras literárias do século 20.
Foto: Getty Images
O biógrafo: Saul Friedländer
No destino de Kafka, Saul Friedländer (*1932) reconheceu coincidências com o seu próprio. Como o poeta, o pai de Friedländer estudou na Universidade Alemã de Praga; e, como as irmãs de Kafka, os pais do biógrafo também morreram em campos de concentração alemães. Friedländer se transportou ao período antes do Holocausto, e escreveu uma das mais belas e perspicazes entre as biografias kafkianas.