Bibliothek: Língua, literatura e cultura popular na Alemanha
Ricardo Domeneck
24 de outubro de 2017
Escritores e compositores, aqueles que trabalham com a língua, têm um papel bastante definidor na relação de seus concidadãos com sua noção de identidade nacional.
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A língua em comum é um dos elementos mais unificadores de um país. Ainda que, quando um dialeto entre muitos é elevado a língua oficial, é importante manter em mente, isso também significa o declínio de muitos outros. Na Alemanha, um caso em questão é o gradual desaparecimento dos falantes de 'plattdeutsch' (o baixo-alemão) no norte do país.
Por algum tempo, eu cheguei a acreditar, numa tradução canhestra, que 'hochdeutsch' (o alemão-alto) e o alemão-baixo eram assim chamados justamente por sua hierarquia: o "alto” é a língua, o "baixo” é o dialeto. Uma questão de importância. Foi um amigo alemão que me alertou que se tratava simplesmente de uma definição geográfica, assim como dizemos Países Baixos. O alto-alemão poderia ser chamado de alemão-montanhês, e o baixo-alemão poderia ser chamado de alemão-litorâneo.
Escritores e compositores, aqueles que trabalham com a língua, têm um papel bastante definidor na relação de seus concidadãos com sua noção de identidade nacional. Tanto no Brasil como na Alemanha, países com movimentos nacionais iniciados em fins do século 18 que os levaram a se tornarem no século 19 os países que conhecemos hoje, os poetas românticos foram centrais nesse processo.
É por isso que autores como Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich Schiller são ainda tão venerados por aqui. Assim como autores brasileiros no século 19 e início do 20 ao criarem seus trabalhos de construção de identidade nacional, Goethe foi também buscar na cultura popular o material para criar uma de suas obras-primas, tão central na cultura literária alemã, em seu ciclo dedicado à história de Fausto e Mefistófeles.
Essa relação complexa de fertilização mútua entre as esferas erudita e popular de um país ocorrem em muitos lugares. O mito popular de Fausto seguiria vivo e seria importante no século 20 no trabalho da família Mann, por exemplo. Quando Heinrich Mann publicou em 1905 seu Professor Unrat, Klaus Mann seu Mephisto em 1936 e Thomas Mann seu Doutor Fausto em 1947, eles ligavam-se a uma tradição popular antiga, que já desaguara na literatura de vários países, seja na obra do inglês Christopher Marlowe com sua Tragicall History of Doctor Faustus (1589) ou do brasileiro João Guimarães Rosa com Grande Sertão: Veredas (1956) e do russo Mikhail Bulgákov com O Mestre e Margarida (1967).
Foi da cultura popular germânica que bebeu ainda outro grande autor do século 19, Heinrich Heine, ainda que sua obra seja tão diferente da de seus contemporâneos. Talvez seja por isso que seu Buch der Lieder (Livro das canções) possa ser encontrado em quase toda casa que entro por aqui. Muitas vezes é o único livro de poesia na estante de algumas pessoas que conheço.
Diferentemente do Brasil, não se costuma associar a Alemanha a sua tradição de música popular. O problema é histórico e sociopolítico, já que tudo o que cheira a "nacional" foi manchado pelo uso que os nazistas fizeram desta tradição. Se isso criou a necessidade de uma "tabula rasa", ela possibilitou o surgimento tão criativo da música eletrônica na Alemanha, sem cheiro de passado, dando ao mundo a potência criativa de bandas como Kraftwerk, Tangerine Dream e Can. Mas mesmo a música popular teve seus nomes de força, que conseguiram resgatar algo da tradição em que bebeu Heinrich Heine, em cantores-compositores como Wolf Biermann e Rio Reiser. A Alemanha, tão propagandeada como terra de filósofos e eruditos, tem seus cantores populares de pé no chão também.
Na coluna Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.
Dez clássicos da literatura infanto-juvenil alemã
Emocionantes, reflexivos, engraçados ou didáticos: as crianças e adolescentes da Alemanha têm naturalmente seus livros preferidos. Quem quer entender a alma nacional precisa conhecer pelo menos estes dez.
Foto: Karikaturmuseum Wilhelm Busch
Simpáticos seres fantásticos
Os livros de Michael Ende foram traduzidos em dezenas de idiomas, lidos por milhões e premiados. E não podem faltar em nenhuma estante da Alemanha, onde toda criança conhece "Jim Knopf e Lucas, o maquinista". E as aventuras do jovem Bastian no país Phantásien, que ganharam projeção internacional desde que "A história sem fim" chegou aos cinemas, em 1984.
Foto: picture-alliance/dpa
De bruxas, bandidos e feiticeiros
"Era uma vez uma bruxinha...": ela tem 127 anos e gostaria de praticar boas ações. Assim começa um dos apreciados livros de Otfried Preussler. Já a trama de "O ladrão Catabrum" gira em torno do roubo da moedora de café da avó de Gasparzinho e do malvado feiticeiro Petrosilius Zwackelmann. Depois de encantar gerações, ao completar 50 anos, em 2012, a obra entrou na era digital, ganhando um app.
Foto: Thienemann Verlag
Vamos para o Panamá!
O Urso e o Tigre vivem juntos numa casa, felizes e satisfeitos. Até que, um dia, encontram uma caixa em que está escrito "Panamá". Ela cheira a banana. Ambos põem o pé na estrada para encontrar essa sua terra dos sonhos. Faz sentido? Não, mas as crianças adoram essa lógica de fantasia. E ela é o charme que distingue os livros do autor alemão de origem polonesa Janosch, de 85 anos.
Foto: picture-alliance/dpa/R. Weihrauch
Monstrinhos de língua presa
Os livros de Max Kruse fervilham de criaturas estranhas: Wutz, Seele-Fant, Wawa, Pinguin Ping e Professor Habakuk Tibatong encontram um ovo gigante. De dentro dele sai... o Urmel. A série de fantoches apresentada na TV também é uma favorita das crianças da Alemanha. Tornando-as ainda mais simpáticas, quase todas as personagens têm alguma falha de dicção: o Urmel, por exemplo, cicia como um dragão.
Foto: picture alliance/dpa/S. Puchner
Hitler e o coelhinho cor-de-rosa
Em "Quando Hitler roubou o coelhinho rosa", Judith Kerr conta a fuga da menina judia Anna, de 9 anos, e de sua família dos nazistas, em 1933. O sensível romance da escritora inglesa nascida dez anos antes, em Berlim, recebeu o Prêmio Alemão de Literatura Juvenil em 1974.
Foto: Ravensburger
Bondade humana
Sem "Emil e os detetives", "Cachos e tranças" e "A sala de aula voadora", nenhuma lista dos clássicos infanto-juvenis alemães estaria completa. Bem humoradas e perspicazes, as obras de Erich Kästner foram traduzidas em mais de cem línguas, e algumas foram também filmadas. Uma frase famosa do autor é: "Não existe nada de bom, a não ser que a pessoa o faça."
Publicadas em 1865, as histórias dos moleques Max e Moritz (Juca e Chico, na tradução de Olavo Bilac) também são um clássico. Seu autor e desenhista Wilhelm Busch é uma espécie de tataravô das histórias em quadrinhos. Porém hoje seus métodos pedagógicos estão um tanto ultrapassados. Como, por exemplo, punir a dupla de travessos moendo-os e dando-os como ração para as galinhas...
Foto: Karikaturmuseum Wilhelm Busch
Os perigos de ser criança
Batizado "João Felpudo" no Brasil, "Struwwelpeter", do médico e psiquiatra Heinrich Hoffmann, é ainda mais antigo, de 1845. E pedagogicamente ainda menos correto: delitos infantis, como falta de higiene, chupar o dedo, hiperatividade ou inapetência são "corrigidos" com humilhações, ferimentos e até mutilações e a morte. Em 1970 foi lançada sua contraparte antiautoritária, o "Anti-Struwwelpeter".
Foto: gemeinfrei
Realidade e ficção se confundem
Em plena "Harry Potter-mania" na Alemanha, Cornelia Funke lançou "Coração de tinta", primeiro volume de sua trilogia do Mundo de Tinta – com milhões vendidos e numerosas distinções. O romance conta as aventuras de Meggie, de 12 anos, que possui o dom de trazer o mundo dos livros para a realidade, ao lê-los em voz alta. A versão filmada foi sucesso de bilheteria.
Humor intraduzível
Cabelos vermelhos, nariz de porquinho, barriga estufada, pintas no rosto: assim é o travesso Sams, figura principal dos livros infantis de Paul Maar. Cheia de jogos de palavras, a série é de difícil tradução, mas várias partes já foram filmadas. O pequeno Sams vive com o senhor Taschenbier, come de tudo e se entende bem com as crianças.