Bibliothek: Mulheres e o início da literatura na Alemanha
Ricardo Domeneck
8 de agosto de 2017
A Alemanha nasceu como "Vaterland", a terra paterna que, como em outras línguas, havia de ter uma "Muttersprache". A terra é dos pais, a língua é das mães. E quem foram essas mães da língua?
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Se nós brasileiros chamamos nosso país de "mãe gentil", por mais irreal que isso seja, para os germânicos que unificaram os vários principados que hoje formam a Alemanha sob certo controle da Prússia, o país que nascia era a Vaterland, a terra paterna. O interessante é que, como em outras línguas, esta Vaterland havia de ter uma Muttersprache. Uma terra paterna com uma língua materna. A terra é dos pais, a língua é das mães. E quem foram essas mães da língua, quem foram as figuras femininas que deixaram marcas na literatura do país? Quando o país foi unificado, já era permitida a educação para meninas das classes mais privilegiadas, ainda que isso se desse apenas até a menarca, ou seja, sua primeira menstruação, quando então passavam a ter tutores em casa. O direito ao voto para mulheres viria apenas com a República de Weimar, em 1918.
A contribuição de mulheres à literatura de língua alemã começa no período medieval. Para um país hoje tão amplamente laico, é importante notar que grande parte do misticismo cristão medieval saiu de penas germânicas. A mulher mais importante neste campo foi sem dúvida Hildegard von Bingen (1098 - 1179), uma mulher de incríveis e variados talentos, autora de poemas, textos místicos, tratados de botânica e medicina, além de criar uma língua, conhecida como Lingua Ignota, que usou em muitos de seus textos. Séculos mais tarde, durante a Reforma Protestante, Argula von Grumbach (1492 - 1554) faria também contribuições aos debates religiosos que tomavam de assalto a região.
Para quem vai a uma livraria na Alemanha hoje, os mais antigos trabalhos escritos por uma mulher que ainda se pode encontrar facilmente nas estantes talvez sejam os poemas de Annette von Droste-Hülshoff (1797 - 1848). É ainda considerada a primeira grande poeta de língua alemã. Certa vez, em viagem pelo Lago de Constança, os amigos com quem estavam apontaram para um castelo e disseram que ali vivera e morrera Annette von Droste-Hülshoff. Era o belo Castelo Meersburg, construído no século 7, considerado o mais antigo castelo da Alemanha ainda habitado.
O próximo grande nome feminino na literatura alemã seria o da poeta e prosadora Else Lasker-Schüler (1869 - 1945). Não se pode discutir o Expressionismo alemão sem citar seu nome. De origem judaica, havia conquistado o respeito do país e seria a última a receber o Prêmio Kleist em 1932, um ano antes da tomada do poder pelo Partido Nazista. Já em 1933, percebendo o perigo e a catástrofe que se aproximava, Else Lasker-Schüler emigra para a Suíça e, entre 1934 e 1937, empreendeu viagens à Palestina. Teve seu passaporte alemão cancelado pelos nazistas em 1938. No ano seguinte, viaja à Palestina mais um vez e a eclosão da Guerra impede seu retorno. A poeta e prosadora morreria em Jerusalém em 1945.
Uma entrevista interessantíssima para compreender a situação das mulheres na Alemanha daquele período é a que Hannah Arendt concede ao jornalista Günter Gaus em 1964. A própria Hannah Arendt é um dos nomes alemães mais importantes do século 20. Recomendo muito que se assista à entrevista, que pode ser encontrada online com legendas. O entrevistador começa dizendo que Arendt era a primeira mulher a ser retratada naquele programa, numa profissão que era considerada "masculina", a de filósofa. A resposta de Arendt é ótima, dizendo que apenas porque uma profissão foi exercida na maioria dos casos por homens não quer dizer que a situação tenha que permanecer assim. Com elegância, ela rebate várias das perguntas de Gaus. A situação mudaria no pós-guerra, mas retorno ao assunto, tratando deste período, na próxima semana. Termino com um obrigado a mulheres como Hildegard von Bingen, Annette von Droste-Hülshoff, Else Lasker-Schüler e Hannah Arendt.
Na coluna Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.
Dez clássicos da literatura alemã
De "Fausto" à "História sem fim", de Thomas Mann a Günter Grass, a literatura alemã inclui obras para todos os gostos. Selecionamos dez.
Foto: picture-alliance/dpa/P. Endig
"Fausto"
Dividido em duas partes, o poema trágico de Johann Wolfgang von Goethe, de 1808, "Faust – eine Tragödie" é considerado uma das obras-primas da literatura alemã. Insatisfeito com a própria vida e sedento de conhecimento, o cientista Heinrich Fausto acaba fazendo um pacto com o diabo, Mefisto, prometendo-lhe sua alma. Na foto, a tragédia é interpretada pelos atores Bruno Ganz e Robert Hunger-Bühler.
Foto: picture-alliance/dpa/Expo_2000
"A Montanha Mágica"
Uma das obras mais conhecidas de Thomas Mann, "Der Zauberberg", de 1924, é considerado um retrato da sociedade europeia antes da Primeira Guerra Mundial. O romance aborda a estadia do jovem Hans Castorp, oriundo de uma tradicional família de Hamburgo, num sanatório, nos Alpes suíços, de 1907 a 1914. O romance foi transformado em filme pelo diretor Hans W. Geissendörfer, em 1982 (foto).
Foto: imago/United Archives
"O tambor"
"Die Blechtrommel", de 1959, trouxe reconhecimento internacional ao futuro Nobel Günter Grass e projeção à literatura alemã do pós-guerra. O romance pertence à chamada "Trilogia de Danzig", que lida com a culpa da Alemanha pelo nazismo e a memória do Terceiro Reich. A versão para o cinema da obra, dirigida por Volker Schlöndorff, foi a primeira produção alemã do pós-Guerra a conquistar um Oscar.
Foto: ullstein - Tele-Winkler
"O perfume"
O bestseller de Patrick Süskind, "Das Parfum – Die Geschichte eines Mörders" foi publicado em 1985 e, em 2006, ganhou versão cinematográfica (foto). A história se passa na França no século 18 e tem como protagonista Jean-Baptiste Grenouille, cujo próprio corpo não tem cheiro, mas que é dotado de um olfato fora do comum. Obcecado em criar o perfume perfeito, ele se transforma num assassino.
Foto: picture-alliance/dpa
"O lobo da estepe"
O clássico "Der Steppenwolf" foi publicado por Hermann Hesse (foto) em 1927. Em plenos anos 1920, em Zurique, o protagonista Harry Haller vive uma crise existencial em meio à devastação do pós-guerra e descreve a si mesmo como "o lobo da estepe". Ao conhecer Hermínia, ele começa a ver o mundo de outra maneira. O livro foi o primeiro de Hesse a ser traduzido para o português, em 1935.
Foto: picture-alliance/Sven Simon
"Os bandoleiros"
O drama de Friedrich Schiller "Die Räuber", de 1781, tem como tema as tramas criminosas da nobreza, mais especificamente a rivalidade entre os irmãos Karl e Franz von Moor. Os dois brigam pelo reconhecimento do pai, concorrem pela mesma mulher e lutam por poder e influência. O clássico acaba de ser adaptado para o cinema no ano passado (foto), codirigido por Pol Cruchten e Frank Hoffman.
Foto: Coin Film Francois Fabert
"A honra perdida de Katharina Blum"
"Die verlorene Ehre von Katharina Blum" foi publicado pelo Nobel de Literatura Heinrich Böll em 1974. O autor tematiza a imprensa sensacionalista e suas possíveis consequências por meio da história da dona de casa Katharina Blum e do assassinato do jornalista Werner Tötges. O romance foi adaptado para o cinema em 1975 (foto), sob a direção de Volker Schlöndorff e Margarethe von Trotta.
Foto: picture-alliance/Mary Evans Picture Library
"O Leitor"
"Der Vorleser", publicado por Bernhard Schlink em 1995, gira em torno do amor de Michael Berg, de 15 anos, por Hanna, 21 anos mais velha. Numa espécie de ritual romântico, ela sempre lhe pede que leia para ela. Até que Hanna desaparece. Anos depois, Michael a reconhece entre os acusados num processo para julgar crimes do nazismo. O romance transformou-se em filme em 2008 (foto).
Foto: Studio Babelsberg AG
"A história sem fim"
"Die unendliche Geschichte", publicado por Michael Ende em 1979, não pode faltar nas estantes das crianças na Alemanha. Todas conhecem as aventuras do jovem Bastian no país Fantasia, que ganharam projeção internacional desde que "A história sem fim" chegou aos cinemas, em 1984 (foto). O romance fascina não somente o público infantil, mas também adulto.
Foto: picture-alliance/dpa
"Contos de Grimm"
A coletânea dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm "Kinder- und Hausmärchen" foi publicada entre 1812 e 1858, e é considerada a obra alemã mais disseminada no mundo, depois da Bíblia de Lutero. Incluindo clássicos como "Rapunzel", "Chapeuzinho Vermelho" (foto) e "Branca de Neve", os contos já foram traduzidos para mais de 160 idiomas e inspiraram filmes, peças de teatro, desenhos animados e quadrinhos.