1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Biocosméticos são modelo de economia sustentável na Amazônia

Carolina Pinheiro
28 de dezembro de 2023

Mulheres ribeirinhas do Alto Araguari, no interior do Amapá, integram rede pioneira de produção baseada no uso de recursos naturais e no conhecimento ancestral da floresta.

Duas mulheres descascando andiroba à beira de um rio, observadas por uma menina
Agroextrativistas do Alto Araguari trabalhando no beneficiamento da andiroba, que depois é transformada em sabonete e óleo vegetalFoto: Maurício de Paiva/DW

Formadas e transformadas pelos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, as paisagens da Amazônia são fruto da ação humana. A maior floresta tropical do planeta passou por um processo de construção ao longo de 12 mil anos. Serve de morada para 22% das espécies de plantas vasculares, 14% das aves, 9% dos mamíferos, 8% dos anfíbios e 18% dos peixes que habitam os trópicos. O registro anterior ao boom do desmatamento era de 390 bilhões de espécies arbóreas (2013) agrupadas em 16 mil espécies, das quais apenas 227 (1,4%), conhecidas como hiperdominantes, representam metade do total de árvores do bioma.

Nesse universo de superlativos, a região de fronteira entre as Florestas Nacional (Flona) e Estadual (Flota) do Amapá e o maior parque nacional do Brasil, o Montanhas do Tumucumaque, abriga comunidades que representam focos de resgate dos territórios pelos atores locais. No Alto Araguari, um grupo de mulheres de três gerações promove o extrativismo sustentável dos recursos naturais, garantindo renda e uma nova perspectiva para as famílias residentes.

A Associação Sementes do Araguari, fundada em 2020, revela sobre o quanto a ciência empírica tradicional praticada pelos povos da floresta é basilar para a manutenção da floresta em pé. "Eu sempre tive o sonho de ver a minha comunidade melhorar. Foram anos de luta para chegar até aqui", relata a agroextrativista Arlete Pantoja, presidente da associação.

A salvaguarda dessas populações viabiliza a preservação do patrimônio biocultural amazônico e é um ponto de resistência contra modelos de ocupação predatórios e imediatistas que provocam atraso, caos, violência e destruição. 

Segundo o arqueólogo Eduardo Góes Neves, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, a Amazônia foi um polo importante de inovação cultural no passado. "Hoje o grande desafio é responder sobre como esses novos achados, essas novas hipóteses podem nos ajudar a ampliar o conceito do que é patrimônio cultural no Brasil", diz.

Biocosméticos e produtos medicinais da floresta

Do extrato de frutos e plantas como andiroba, fava, pracaxi, breu-branco e copaíba, as agroextrativistas do Alto Araguari fabricam biocosméticos, tais como sabonetes, óleos, unguentos e pomadas. São produtos com alta concentração de propriedades medicinais. Possuem componentes anti-inflamatórios, antioxidantes e antibióticos naturais.

Farmacêutica do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (IEPA), Therezinha de Jesus Soares dos Santos relata que a confecção dos cosméticos artesanais envolve um passo a passo imprescindível da coleta e extração ao comércio. "Nas oficinas do Farmácia da Terra [capacitação sobre beneficiamento dos extratos das plantas e sementes], que voltarei a ministrar em 2024, eu as orientei sobre a produção de fitoterápicos e fitocosméticos. Pretendemos aumentar a linha de produtos da Sementes, porém isso só acontecerá quando elas tiverem o local de sua sede adaptado a algumas normas básicas de boas práticas", diz.

Povos guardiões

Atualmente, as agroextrativistas já adquiriram condições para produzir o ano inteiro. "Avançamos na construção do laboratório e da miniusina de beneficiamento; instalamos duas prensas; estufa; alojamento; e espaço para eventos e reuniões", conta Arlete. Por se tratar de um trabalho manual, o processo exige o dobro de atenção e, sobretudo, o aporte de recursos para aquisição de maquinário e adequação do espaço físico reservado para o processamento. Por um lado, o cenário é favorável, pelo outro, falta incentivo. Portanto, as conquistas têm a dimensão de uma vida.

Processamento da fava, usada por ribeirinhos para tratamento de fungos e bactérias e que serve de base para sabonete glicerinadoFoto: Maurício de Paiva/DW

Com o apoio do Instituto Iepé e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Sementes do Araguari conseguiu aprovar projetos importantes. Entre eles, o Floresta Mais e o Fitoterápicos, financiados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Foram eleitas cinco espécies de plantas prioritárias por região: jaborandi, unha-de-gato, cipó-pucá, andiroba e copaíba. Um dos objetivos é o de inventariar e manejar as matas para o mapeamento das árvores nas áreas produtivas da Flota do Amapá.

"A copaibeira, por exemplo, tem bastante. Às vezes, encontram-se seis, até dez exemplares da árvore nos nossos terrenos", explica Arlete, nascida e criada dentro da floresta. Embora a densidade populacional dessa espécie seja alta, é a andiroba o carro-chefe da associação. A última safra rendeu 4 toneladas da semente. "Com a estufa pronta, ainda temos mais de 1 mil quilos de andiroba estocados para venda. O sabonete é o que mais sai, mas há óleo envasado de sobra e logo chega a época da safra. Em abril já está caindo".

De acordo com o The Science Panel for the Amazon (Spa), a busca por alternativas capazes de gerar renda e qualidade de vida para as comunidades passa pela produção de conhecimento com base nos saberes tradicionais. Ciência, tecnologia, inovação e planejamento estratégico cujo princípio esteja na reciprocidade e igualdade. Tal transição inclui o investimento em infraestrutura e novos mercados.

575 árvores cortadas por minuto

De um lado, há o uso de plantas e do fogo pelos povos da floresta e, do outro, a utilização do mesmo com o objetivo de desmatar. E o que se vê com as práticas de "agricultura moderna" é o avanço da conversão da floresta em campos para monocultivo. Hoje, o fogo ocorre com intensidade e frequência maiores. Acontecem episódios repetidos de queima nos mesmos lugares em intervalos de poucos anos.

As mudanças climáticas e o desmatamento aumentam o risco de incêndios criminosos ou naturais. Entre os nove países que integram a Pan-Amazônia, que inclui também Bolívia, Colômbia, Peru, Suriname, Venezuela, Equador e Guianas, o Brasil lidera a devastação da floresta.

Segundo dados do sistema Deter (Inpe) divulgados no indicador desenvolvido pela rede MapBiomas, até 19 de dezembro de 2023, a contabilização de árvores cortadas, no ano, ultrapassou 281.908.269. Apesar de reduzido, uma vez que, em novembro de 2022, o monitor marcava 558.453.525, a média é de 825.029 por dia e 575 por minuto. Índices ainda alarmantes, apesar do declínio em comparação aos anos anteriores.

Economia da floresta em pé

A economia da floresta em pé tem como base o modo de vida e o conhecimento ancestral dos habitantes da floresta. Essas pessoas buscam por iniciativas que estimulem a criação de políticas públicas e o investimento em tecnologia em prol de sua autonomia contra a predação do bioma, o desmatamento – causado, sobretudo, por queimadas criminosas.

O Amapá é o único estado do país com cerca de 70% de seu território coberto por áreas de proteção ambiental. No Alto Araguari, a comercialização dos biocosméticos acontece de acordo com a demanda. A associação recebe pedidos de várias partes do Brasil, como cidades de Minas Gerais e São Paulo. Possui pontos de venda espalhados pela capital, Macapá, além de stands em feiras e eventos que ocorrem, majoritariamente, na Amazônia.

"O que mais me motiva é perceber que a produção aumenta porque as pessoas gostam do que fazemos. Os retornos que recebemos são gratificantes. Sonhamos em expandir, abrir uma loja própria, mandar os produtos para todo o país e, acima de tudo, conseguir receber um salário mensal com o nosso projeto", conclui Cauane Leal Nascimento, jovem agroextrativista associada à Sementes desde 2020.

*A reportagem integra o projeto "Amazônia: fogo contra fogo" e foi produzida com o apoio do fundo para o jornalismo voltado a Florestas Tropicais, em parceria com o Pulitzer Center.

Pular a seção Mais sobre este assunto
Pular a seção Manchete

Manchete

Pular a seção Outros temas em destaque