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Para atacar isolamento, Bolsonaro distorce fala da OMS

31 de março de 2020

Presidente alega que Tedros Adhanom defendeu retorno ao trabalho em discurso, enquanto, na verdade, ele cobrava governos a agirem pelos mais pobres. Diretor-geral da organização vai ao Twitter explicar sua posição.

Tedros Adhanom Ghebreyesus, chefe da OMS
A OMS recomenda o isolamento social como uma das medidas para combater o novo coronavírusFoto: Getty Images/AFP

O presidente Jair Bolsonaro distorceu nesta terça-feira (31/03) um discurso do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, para afirmar que a entidade "se associa" à sua postura contrária ao isolamento social e a favor do retorno ao trabalho.

Em mensagens publicadas no Twitter mais tarde, Tedros explicou sua posição sobre o tema, contrariando um alinhamento de pensamento com Bolsonaro, mas sem mencionar o líder brasileiro pelo nome. Em resposta à TV Globo, a OMS também negou ser contrária a medidas de isolamento social, como pregou o presidente.

Em discurso na segunda-feira, Tedros disse estar preocupado com as muitas pessoas que ainda "precisam trabalhar para ganhar o pão de cada dia". "Se estamos limitando os movimentos, o que vai acontecer com essas pessoas que precisam trabalhar diariamente?", questionou.

O chefe da OMS emendou a fala afirmando que "cada país deve responder a essa questão", cobrando então dos governos que adotem medidas para garantir assistência à população mais pobre durante a crise do coronavírus.

"Os governos precisam garantir o bem-estar das pessoas que perderam a fonte de renda e que estão necessitando desesperadamente de alimentos, saneamento, e outros serviços essenciais", disse, reiterando que as ações governamentais precisam assistir às pessoas mais vulneráveis. "Porque cada indivíduo importa."

Ao citar e elogiar o discurso de Tedros nesta terça-feira, Bolsonaro se referiu à primeira parte da fala, mas omitiu a segunda, sugerindo que o diretor-geral da organização tivesse defendido o retorno da população ao trabalho.

A OMS, porém, segue recomendando o isolamento social como uma das principais medidas para combater a propagação do coronavírus Sars-Cov-2. Tedros também costuma mencionar a importância da medida em seus pronunciamentos diários.

"Vocês viram o presidente da OMS ontem?", questionou Bolsonaro ao falar com jornalistas e apoiadores na manhã desta terça-feira. "O que ele disse, praticamente... em especial, com os informais, [é que eles] têm que trabalhar. O que acontece? Nós temos dois problemas: o vírus e o desemprego. Não podem ser dissociados, temos que atacar juntos."

Segundo o presidente, Tedros estava "um pouco constrangido" ao abordar o assunto, "mas falou a verdade". "Eu achei excepcional a palavra dele, e meus parabéns: OMS se associa a Jair Bolsonaro", alegou, arrancando aplausos de apoiadores.

Na noite de segunda, Bolsonaro já havia compartilhado no Facebook um vídeo com um trecho do discurso de Tedros, mas sem a parte em que ele cobra os governos. "Algo mudou na OMS? Agora se preocupam com os informais? Jair Bolsonaro sempre esteve certo?", diz a legenda na rede social.

Mais tarde nesta terça-feira, o diretor-geral da OMS foi ao Twitter defender sua posição de que os governos precisam agir em prol da população mais necessitada.

"Pessoas sem fonte de renda regular ou sem qualquer reserva financeira merecem políticas sociais que garantam a dignidade e permitam que elas cumpram as medidas de saúde pública para a covid-19 recomendadas pelas autoridades nacionais de saúde e pela OMS", escreveu.

"Eu cresci pobre e entendo essa realidade. Convoco os países a desenvolverem políticas que forneçam proteção econômica para as pessoas que não podem receber ou trabalhar em meio à pandemia da covid-19. Solidariedade!", completou Tedros, que é nascido na Etiópia.

A TV Globo questionou a OMS sobre a alegação de Bolsonaro nesta terça-feira, perguntando se as declarações de Tedros na véspera justificam a afirmação de que "os informais têm que trabalhar", como pregou o líder brasileiro.

Segundo o portal G1, a organização respondeu à emissora que Tedros não afirmou ser contra medidas de isolamento social, e sim disse que as pessoas que perderam renda por causa da crise do coronavírus precisam receber apoio de seus governantes.

Mais tarde, o próprio ministro da Saúde de Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta, negou que a OMS tenha defendido o retorno dos trabalhadores a seus ofícios. Ele também se mostrou favorável ao "máximo distanciamento social", contrariando o discurso do presidente.

"Nós vamos trabalhar com o máximo de planejamento. E, no momento, nós vamos fazer, sim, o máximo de distanciamento social, o máximo de permanência dentro das nossas residências de homeworking, para que a gente possa chegar ao momento de falar: 'Estamos mais preparados e entendemos aonde vamos'", disse Mandetta em coletiva de imprensa no Planalto.

Bolsonaro tem minimizado a pandemia

Nos últimos dias, Bolsonaro tem pedido para que a população volte ao trabalho e defendido uma forma de quarentena parcial, isolando apenas idosos e doentes crônicos. O presidente também minimizou repetidas vezes a pandemia, classificando a covid-19 como uma "gripezinha", inclusive num pronunciamento polêmico que gerou ondas de condenação.

Na semana passada, redes do Planalto chegaram a publicar uma propagando com o slogan "O Brasil não pode parar", alinhado com as ideias do presidente sobre a pandemia. No entanto, a campanha foi barrada por ordem da Justiça. O governo apagou as publicações e depois declarou que a campanha "nunca existiu", apesar de o material ter ficado disponível por três dias.

No último domingo, Bolsonaro passeou por estabelecimentos comerciais na região de Brasília, provocando aglomerações e desafiando as restrições impostas pelo governo do Distrito Federal para conter a circulação de pessoas. O presidente ainda publicou vídeos das visitas em suas redes sociais.

Neles, era possível ouvir comerciantes e camelôs falando que "querem trabalhar" – falas afinadas com o discurso de Bolsonaro, que vem defendendo uma "volta à normalidade" e atacando medidas amplas de isolamento impostas por governadores.

O material acabou sendo deletado pelo próprio Twitter, numa rara ação contra um chefe de Estado, por violar as regras da plataforma.

EK/ots

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