Bolsonaro rejeita debate racial após morte em supermercado
21 de novembro de 2020
Ainda evitando mencionar diretamente assassinato de homem negro no RS, presidente usa linguagem conspiracionista e diz que "luta pela igualdade e justiça social" mascara busca pelo poder. Vítima é enterrada.
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Em meio à comoção provocada pela morte de João Alberto Silveira Freitas em um supermercado de Porto Alegre, o presidente Jair Bolsonaro usou uma linguagem típica de teóricos da conspiração para denunciar neste sábado (21/11) o que chamou de tentativa de gerar tensões raciais artificiais no Brasil.
"O Brasil tem uma cultura diversa, única entre as nações. Somos um povo miscigenado. Foi a essência desse povo que conquistou a simpatia do mundo. Contudo, há quem queira destruí-la, e colocar em seu lugar o conflito, o ressentimento, o ódio e a divisão entre raças, sempre mascarados de 'luta por igualdade' ou 'justiça social'. Tudo em busca de poder", disse.
Ele também denunciou o que chamou de "tentativas de importar para o nosso território tensões alheias à nossa história" e disse que "aqueles que instigam o povo à discórdia (...) atentam não somente contra a nação, mas contra nossa própria história".
As declarações foram feitas em um discurso que marcou a abertura da cúpula do G20, que ocorre de maneira virtual. "Enxergo todos com as mesmas cores, verde e amarelo. Não existe uma cor de pele melhor do que as outras. O que existem são homens bons e homens maus, e são as nossas escolhas e valores que determinarão qual dos dois nós seremos", completou.
As declarações foram feitas após uma série de protestos intensos contra a morte de Silveira Freitas, um homem negro, por seguranças de um supermercado da rede Carrefour em Porto Alegre. Silveira Freitas, de 40 anos, foi espancado e morto na noite de quinta-feira, véspera do Dia da Consciência Negra.
Quase dois dias depois do episódio, Bolsonaro não fez nenhuma menção direta sobre a vítima ou prestou solidariedade à família. Em vez disso, vem aproveitando o caso para divulgar sua própria agenda política. As declarações feitas na reunião do G20 vão na mesma linha de uma série de tuites publicados pelo presidente na noite de sexta-feira. "Não nos deixemos ser manipulados por grupos políticos. Como homem e como Presidente, sou daltônico: todos têm a mesma cor", escreveu Bolsonaro.
Bolsonaro, ao longo da sua carreira política, acumulou uma série de declarações preconceituosas. "Alguém já viu um japonês pedindo esmola por aí? Porque é uma raça que tem vergonha na cara", disse Bolsonaro em 2017. Na mesma ocasião, Bolsonaro também foi acusado de racismo ao citar visita a um quilombo e afirmado que o "afrodescendente mais leve de lá pesava sete arrobas" — em referência à unidade de medida usada na pesagem de bovinos e suínos. O presidente costuma se defender as acusações de racismo citando que seu sogro "é o Paulo Negão" e que salvou um soldado negro de se afogar em seus tempos de Exército.
Na sexta-feira, Dia da Consciência Negra, o vice-presidente Hamilton Mourão também adotou uma linha parecida com a de Bolsonaro e disse que não existe racismo no Brasil. "Não, para mim no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar, isso não existe aqui. Eu digo pra você com toda tranquilidade, não tem racismo", ressaltou Mourão. Em 2018, Mourão, que tem ascendência indígena, provocou escândalo ao se vangloriar da aparência branca de um neto. 'Meu neto é um cara bonito, branqueamento da raça", disse na ocasião.
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Revolta marca enterro em Porto Alegre
João Alberto Silveira Freitas foi enterrado no final da manhã deste sábado no cemitério São João, na capital gaúcha. Durante o velório, uma coroa de flores mostrava a inscrição "Justiça por João Alberto Freitas". Cerca de 50 familiares e amigos participaram do funeral. Eles cantaram hinos religiosos e pediram repetidamente por justiça. Uma pessoa exibiu uma placa "Vidas negras importam".
A viúva dele, Milena Borges Alves, de 43 anos, abriu sua mochila e, de dentro dela, tirou uma aliança dourada. Levantou o véu e colocou a aliança perto da cabeça de Beto, como ele era conhecido. Eles iriam se casar nas próximas semanas.
Análises preliminares do Instituto Geral de Perícias do RS (IGP-RS) apontam para a possibilidade de asfixia como causa da morte.
Os negros representam 56% da população brasileira e também são os que mais morrem, ganham menos e sofrem mais com o desemprego no país. De acordo com dados do Atlas da Violência 2020, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 75% das vítimas de homicídios no Brasil em 2018 eram negras.
A taxa de homicídios de negros no país subiu de 34 assassinatos por 100 mil habitantes, em 2008, para 37,8, em 2018, um aumento de 11,5% na década, enquanto o número de assassinatos entre não negros caiu 12,9% no mesmo período.
JPS/ots/efe
O racismo e os filmes hollywoodianos
O drama "Green Book" foi premiado com o Oscar de melhor filme de 2019. O tema da segregação racial já foi abordado por Hollywood diversas vezes no passado.
Foto: picture alliance/AP/Universal/P. Perret
Melhor filme de 2019
A história contada pelo diretor Peter Farrelly é baseada em fatos reais. Viggo Mortensen (esq.) faz o papel de um chofer de um pianista negro que viaja pelos estados do sul dos EUA, orientando-se pelo "Green Book: o Guia". A particularidade: o livro informa motoristas sobre restaurantes e hotéis que são exclusivamente para pessoas negras – um sinal claro de segregação racial.
Foto: picture alliance/AP/Universal/P. Perret
"Infiltrado na Klan"
Em 2019, o Oscar do melhor roteiro adaptado foi para um filme que também aborda a segregação racial. "Infiltrado na Klan", do diretor Spike Lee, remonta igualmente a uma história verídica. Nos anos 1970, um policial negro consegue se infiltrar na Ku Klux Klan. Desde a década de 1980, o cineasta afro-americano vem abordando o tema do racismo nos EUA.
Foto: D. Lee/F. Features
"Pantera Negra"
Um terceiro filme que aborda – no sentido mais amplo – o tema do racismo também arrebatou três Oscar este ano. "Pantera Negra", adaptação de HQ dos estúdios Marvel, apresentou pela primeira vez um super-herói negro. Os autores de quadrinhos Stan Lee e Jack Kirby criaram os personagens na década de 1960, no auge do movimento pelos direitos civis.
Foto: picture-alliance/Marvel Studios
Homens brancos julgam…
Em 1957, o filme "Doze homens e uma sentença" foi uma das primeiras obras do cinema americano a tratar do racismo. Como thriller judicial em primeira linha, a estreia cinematográfica do diretor Sidney Lumet também abordava os preconceitos dos doze jurados brancos, responsáveis pelo veredicto contra um jovem porto-riquenho no tribunal.
Foto: picture-alliance/United Archives
"No calor da noite"
Dez anos depois, foi Sidney Poitier quem abriu mais portas em Hollywood. No drama "No calor da noite", Poitier interpreta um policial do norte que tem de resolver um caso no sul dos EUA e se depara com um racismo abismal. O filme foi premiado com cinco Oscars – e coroou Poitier como primeiro superastro afro-americano do cinema do país.
Foto: picture-alliance/United Archiv/TBM
"Mississippi em chamas"
Rodado nos EUA pelo diretor britânico Alan Parker, em 1988, "Mississippi em chamas" aborda assassinatos de negros e investigações do FBI. Um crítico escreveu: "A direção sensacionalista de Parker (faz) praticamente tudo para transformar 'Mississippi em chamas' num pastiche de filme de gângster. Mesmo assim, a película rompe um tabu: põe a culpa em toda uma camada burguesa de americanos brancos."
Foto: ORION PICTURES CORPORATION
"Conduzindo Miss Daisy"
Um ano depois, o australiano Bruce Beresford trouxe às telas a história sentimental produzida em Hollywood "Conduzindo Miss Daisy". Da mesma forma que "Green Book: o Guia", este filme também foi um exemplo de como se pode lidar com o tema no cinema: de forma conciliatória e sentimental. Ele conseguiu levar quatro Oscars.
Foto: picture-alliance/Mary Evans Picture Library/Majestic Films
"Gran Torino"
Em 2008, o diretor e estrela de Hollywood Clint Eastwood surpreendeu seus fãs com o drama "Gran Torino". Nele, Eastwood interpreta um americano racista, que nutre preconceitos principalmente contra a população de origem asiática nos EUA. No decorrer do filme, o personagem interpretado por Eastwood se transforma por meio de vivências pessoais para melhor.
Foto: Imago//Unimedia Images
Mais Clint Eastwood
Um ano depois, Eastwood abordava novamente, de outra forma, o tema do racismo. No drama biográfico esportivo "Invictus", ele conta a história da seleção sul-africana de rúgbi. "Conquistando o inimigo" foi o título do livro original. Eastwood lançou um olhar sobre a África do Sul na era pós-apartheid. Morgan Freeman fez o papel de Nelson Mandela.
Foto: AP
"O mordomo da Casa Branca"
Este filme também se encaixa na tradição de filmes americanos sobre o racismo com o ímpeto esclarecedor: "O mordomo da Casa Branca" (2013), com Forest Whitaker e Oprah Winfrey nos papéis principais. Ele conta a história baseada em fatos verídicos autênticos do mordomo afro-americano Eugene Allen, que trabalhou para oito presidentes dos EUA. A película também reflete a recente história americana.
Foto: picture alliance/AP Images
"Doze anos de escravidão"
Lançado nos cinemas em 2013 e premiado com o Oscar de melhor filme um ano depois, "Doze anos de escravidão" faz um retrospecto dos primórdios da escravatura nos EUA. O filme do artista britânico Steve McQueen, que também faz sucesso como diretor de longas-metragens, encenou o drama sobre racismo com atores famosos – e convenceu a Academia de Hollywood.
Um ano depois, a diretora americana Ava DuVernay também mergulhou na história. Em "Selma", ela abordou as marchas de ativistas dos direitos dos negros e da população em geral da cidade de Selma para Montgomery, no estado do Alabama. No filme, David Oyelowo interpreta Martin Luther King, Tom Wilkinson (foto) aparece como o insensível presidente Lyndon B. Johnson.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Nishijima
"Loving: uma história de amor"
Três anos atrás, o diretor americano Jeff Nichols surpreendeu o público com o sensível drama "Loving: uma história de amor", no qual também se resgata um capítulo da história do racismo nos EUA. O filme destaca a luta de um casal que se rebela contra a lei dos casamentos mistos proibidos – conseguindo êxito em tribunal.
Foto: picture-alliance/ZUMAPRESS.com/Focus Features
"Corra"
Certamente uma das contribuições mais originais sobre o tema do racismo no cinema foi o filme "Corra" em 2017. Ao contrário de tantas produções hollywoodianas bem-intencionadas, mas muitas vezes piegas, o diretor afro-americano Jordan Peele fez um filme de gênero no qual o racismo é apresentado com elementos de terror e comédia – o resultado é uma mescla de gêneros muito original e convincente.
No mesmo ano, o diretor Barry Jenkins conquistou o Oscar de melhor filme com "Moonlight: sob a luz do luar". Em três capítulos, Jenkins conta a história de um homossexual afro-americano. Esteticamente convincente, o filme é um exemplo de obra cinematográfica formalmente interessante e que implementa seu tema embasada e diferenciadamente, dispensando melodrama e sentimentalismo.
Foto: picture alliance/AP Photo/D. Bornfriend
"Eu não sou seu negro"
Além dos muitos filmes com os quais o cinema americano tem contribuído para o assunto nas últimas décadas, houve documentários esporádicos. Em "Eu não sou seu negro" (2016), o diretor haitiano Raoul Peck baseou de forma muito convincente seu olhar retrospectivo sobre o racismo nos EUA, especialmente em textos do escritor afro-americano James Baldwin.