"Brasil alemão" comemora 180 anos
25 de julho de 2004Em clima de festa, com Spiessbraten (churrasco), Schnaps (cachaça) e Volkstanz (dança folclórica), descendentes da segunda colônia de imigrantes alemães no Brasil – São Pedro de Alcântara, em Santa Catarina – receberam, há alguns anos, um grupo de 42 turistas da Alemanha. Para a maioria dos anfitriões, esse primeiro encontro com o povo de suas raízes, porém, foi um choque: conversar com os "alemães de verdade" só era possível com a ajuda das mãos e dos pés, tão estranho soava o Hochdeutsch para quem falava apenas fragmentos do Hunsrückisch, um dialeto da região do Palatinado.
No decorrer da visita – e com a ajuda da cachaça – a língua dos teuto-brasileiros destravou, mas o episódio evidenciou uma coisa: o tempo e a chamada "política do abrasileiramento" cavaram um enorme fosso entre a Alemanha dos emigrantes do século 19 e o "Brasil alemão" do século 21. São Pedro de Alcântara parece não ser uma exceção. Calcula-se que dos 2,5 milhões de descendentes de alemães do Rio Grande do Sul, apenas 500 mil ainda falam ou entendem alemão.
Enquanto nos pequenos municípios do interior, principalmente da região Sul, ainda sobrevivem tanto antigas formas do Hochdeutsch, Hunsrückisch ou Pommerisch quanto canções e danças tradicionais, nas grandes cidades a integração dos alemães ao caldo cultural brasileiro é praticamente completa.
A adaptação foi acelerada pela chamada "nacionalização": a partir de 1937, o ditador Getúlio Vargas proibiu qualquer língua que não fosse o português. Depois que o Brasil entrou na guerra ao lado dos Aliados em 1942, os alemães brasileiros passaram a ser considerados a quinta coluna nazista, foram discriminados, transferidos ou até internados. Nas escolas, eram chamados de "alemães batata".
O "abrasileiramento" forçado, porém, não impediu que a cultura brasileira fosse enriquecida por uma valiosa herança germânica, cujos resquícios ainda estão presentes no dia-a-dia dos brasileiros e visíveis não apenas durante as comemorações dos 180 anos da imigração.
Do enxaimel às escolas comunitárias
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os alemães no Brasil tiveram um importante papel no processo de diversificação da agricultura, na urbanização e industrialização, tendo influenciado, em grande parte, a arquitetura das cidades e a paisagem físico-social brasileira.
Um exemplo são as casas no chamado estilo enxaimel, uma das principais atrações turísticas em qualquer região de colonização alemã. Quando os primeiros alemães chegaram ao Brasil, essa arquitetura já estava fora de moda na Alemanha, mas teve continuidade, com adaptações, principalmente no Vale dos Sinos no Rio Grande do Sul e no Vale do Itajaí em Santa Catarina. Parte do enxaimel de hoje, porém, é só fachada para atrair turistas e pouco tem em comum com as construções robustas e baratas dos pioneiros.
Além de difundir o Fachwerk, o imigrante alemão trouxe a religião protestante, contribuiu para o desenvolvimento urbano e da agricultura familiar, bem como introduziu no país o cultivo do trigo e a criação de suínos. "Na colonização alemã, está a origem da formação de um campesinato típico, marcado fortemente com traços da cultura camponesa da Europa Central", constata o IBGE.
Os primeiros colonos eram também artesãos e ajudaram a lançar as bases das indústrias têxtil, metalúrgica e calçadista (Novo Hamburgo) no Sul do país. Prova disso é a própria ex-colônia de São Leopoldo, hoje um centro industrial com 200 mil habitantes.
Com suas escolas comunitárias (Gemeindeschulen), os alemães deram um forte impulso à educação. Hoje "os dez municípios brasileiros mais alfabetizados são de colonização alemã. O mais alfabetizado é São José do Oeste, no extremo-oeste de Santa Catarina; os outros nove, no Rio Grande do Sul", diz o professor Altair Reinehr, de Maravilha (SC).
A Universidade Federal do Vale dos Sinos (RS), por exemplo, foi fundada por padres jesuítas alemães que vieram trabalhar nas colônias. As ordens e as congregações religiosas também foram responsáveis pela chamada "restauração do catolicismo brasileiro".
Oktoberfest, Kerbs, árvore e doces de Natal
Na religião, foi forte a influência dos pastores, padres e religiosos descendentes de alemães. Várias igrejas protestantes, como a IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, foram implantadas com a chegada dos imigrantes e o próprio ritual católico adquiriu certas especificidades nas comunidades alemãs. Por influência das igrejas também surgiram organizações como a Associação Rio-Grandense de Agricultores (Bauernverein), de caráter interconfessional, e a Sociedade União Popular para os Alemães Católicos do RS (Volksverein). As associações de leigos criaram cooperativas e hospitais, maternidades e asilos para idosos. Somam-se a isso as sociedades de ginástica, canto coral e clubes de caça e tiro, ainda cultivadas no Sul.
A vida cultural dos imigrantes também teve um papel importante na formação da cultura brasileira, especialmente no que diz respeito a certos hábitos alimentares, encenações teatrais típicas, corais de igrejas, bandas de música. Um exemplo característico é a Oktoberfest que, a princípio, surgiu como uma forma de manifestação contra a "política de nacionalização" do Estado Novo. Hoje, ela é uma festa que simboliza a alegria alemã, tendo incorporado, com adaptações e modificações, a gastronomia, a música, a língua alemãs. A mais conhecida no Brasil é a Oktoberfest de Blumenau, imitação da festa de Munique.
Não menos importantes para os descendentes é o Kerb (também chamado de Kerchweifest ou Kirmes), que está na origem de muitas festas de igreja nas regiões de colonização alemã. Também as comemorações de Natal e da Semana Santa foram influenciadas pela figura do São Nicolau (Papai Noel), a árvore e doces de Natal e o coelho de Páscoa trazidos da Alemanha. É nas festas populares que se vê a maior concentração de ingredientes alemães no cardápio sulista, como o assado de porco, a salsicha bock ou iguarias como a cuca – tudo regado a chope.
Literatura
Segundo o professor Luís Augusto Fischer, da UFRGS, a primeira referência aos alemães na literatura brasileira acontece no romance Canaã, de Graça Aranha, editado em 1902. Nele, dois personagens discutem a questão da manutenção da identidade em oposição à miscigenação. Vianna Moog foi o primeiro a centralizar o problema, em sua novela Um rio imita o Reno (1939), que aborda os limites da integração cultural de teutodescendentes com brasileiros, numa cidade imaginária, Blumental. Na mesma geração, Érico Veríssimo apresentou alguns traços da chegada alemã no Sul, em seu romance histórico O tempo e o vento, publicado a partir de 1949. Pelo menos um poeta e crítico de origem alemã alcançou projeção nacional na mesma época: Augusto Meyer.
Nos anos 70, Josué Guimarães relata o lento enraizamento do colonos sulinos em A ferro e fogo. Depois, Luiz Antônio de Assis Brasil abordou o episódio dos Mucker. Nos últimos 30 anos, segundo Fischer, vários escritores deram continuidade ao tema da imigração alemã, como Lya Luft, Charles Kiefer, Paulo Becker, Luiz Sérgio Metz, Roberto Velloso Eifler, Nilson Luiz May, Valeska de Assis e Fernando Neubarth.
Da herança colonial aos "100% brasileiros"
Dependendo do ponto de vista, pode-se falar até numa presença e participação alemã na formação da nação brasileira anterior à fundação de São Leopoldo (RS), há 180 anos. O historiador Telmo Lauro Müller argumenta, porém, que o ano de 1824 marca o início da imigração alemã para o Brasil, "porque, ao contrário do que ocorreu nos povoamentos com participação alemã alguns anos antes no sul da Bahia ou Rio de Janeiro, São Leopoldo foi um projeto claramente definido". Para o Sul do Brasil esta data representou o início de uma nova era, acrescenta Müller, para quem "os artesãos alemães foram os precursores da posterior industrialização do país".
Já o jornalista e historiador Dieter Böhnke, de São Paulo, relativiza essa data, afirmando que os primeiros alemães desembarcaram em 1500, entre eles o cozinheiro de Pedro Álvares de Cabral. Segundo ele, mais de 10% da atual população brasileira tem pelo menos um antepassado alemão. Parece muito, mas é pouco, se comparado aos 43 milhões de norte-americanos (15,2% da população dos EUA) que dizem ter pelo menos um ascendente germânico, formando o maior grupo étnico do país. "No Brasil, esses números são bem menores, mas sem a sua contribuição é impossível entender a história, cultura e identidade brasileira", conclui.
Ele lamenta que até mesmo muitos dos descendentes de alemães desconhecem a herança cultural de seus antepassados. Em parte, isso é explicado pelo lusitanismo da historiografia oficial e o alienamento geral pela televisão. Outros simplesmente não vêem mais sentido em cultivar as tradições do passado, como revelam integrantes do clube Sogipa (antigamente Deutscher Turnverein) em Porto Alegre. "Ainda tiramos os trajes típicos do guarda-roupa para a Oktoberfest, mas ao cultivo dos costumes só se dedica mais o departamento bávaro".
Por mais que se festejem os 180 anos da imigração – inclusive com hasteamento da bandeira alemã – isso não deve mudar um sentimento aparentemente dominante, sobretudo entre os jovens descendentes, sintetizado nas palavras do tenista catarinense Gustavo Kuerten, o Guga. "O fato de eu descender de alemães não significa nada. Sou 100% brasileiro".
Artigo originalmente publicado em 25 de julho de 2004