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HistóriaBrasil

"Brasil criava barreiras para forçar libertos a ir embora"

Vinicius Pereira
11 de dezembro de 2024

Em "Os retornados", Carlos Fonseca conta a história de ex-escravizados que deixaram o Brasil e formaram comunidades afro-brasileiras na África.

Monumento Porta do Não Retorno, no Benim
Monumento Porta do Não Retorno, no Benim, foi construído no local onde eram embarcados africanos que foram escravizados nas AméricasFoto: SSOUF SANOGO/AFP

Os mais de 350 anos de escravidão no Brasil marcaram o país de maneira irreversível e ainda impactam o Brasil atual, segundo Carlos Fonseca, historiador, diplomata, e mestre em políticas públicas pela Harvard Kennedy School. Fonseca lançou o livro Os retornados, no qual conta história de ex-escravizados que deixaram o Brasil e formaram comunidades afro-brasileiras no golfo do Benim, na África.

Em entrevista à DW, Fonseca afirma que o Brasil precisa melhorar o entendimento sobre os laços com a África, sem deixar com que as histórias de milhões de escravizados se percam. "Você não pode pensar num projeto de país, se você opta por esquecer uma coisa que foi determinante para a história brasileira", diz.

"O Brasil não seria o que é hoje se não fosse o que foi."Foto: Divulgação

Para o historiador, a elite brasileira, que comandava o país à época, forçou milhares de ex-escravizados a tentarem a sorte em outro continente. "Para a elite brasileira, o projeto de Brasil ideal significava um país branco. Então, o que você faz com os ex-escravizados? O país não mandou as pessoas embora, mas criava dificuldades de maneira a forçá-los a irem embora."

Fonseca conta a história de escravizados libertos e seus descendentes que retornaram à África, voluntariamente ou obrigados, em um movimento que se iniciou a partir de 1835 e se estendeu até o século 20, e que mantêm laços até hoje com o Brasil, apesar das dificuldades. "Ainda existem muitos desses traços de brasilidade na África, como na culinária e mesmo na arquitetura", conclui.

DW: Os Retornados aborda a experiência de escravizados libertos e seus descendentes que saem do Brasil e retornam à África, voluntariamente ou obrigados. Como foi esse movimento?

Há alguns movimentos separados. O movimento de retorno propriamente dito começa, com maior número de pessoas, na década de 1830. Para a história da escravidão, é uma década importante porque é um período marcado por revoltas de escravizados, sendo a maior delas a Revolta dos Malês, que acontece em 1835.

Portanto, podemos dividir, de forma geral, esses retornados em dois grandes grupos? Os que foram retornados até contra a vontade, que tinham uma ligação com os movimentos revolucionários no Brasil, e os outros que não eram mais escravizados e que conseguiram ser libertos e retornam à África?

Sim. Há um grupo pequeno dos que foram para lá para ganhar dinheiro como traficantes de escravos. Esse grupo é bem pequeno, tem meia dúzia de famílias. E há alguns que foram expulsos por causa da Revolta dos Malês, e que acabaram levando as famílias.

Já a partir da década de 1840, a maioria desse pessoal vai por vontade própria. Eles fretam navios, ou, às vezes, até com o apoio de algumas sociedades de auxílio, que pagavam a viagem fretando até navios. Alguns vão na linha de querer morrer na África, onde nasceram.

O que impulsionou nesse movimento?

Acho que a razão principal dessa ida são as leis que são criadas para dificultar a vida dos libertos. Havia um aspecto de segurança, de medo, pois o governo da época controlava essa população, sobretudo depois da década de 1850, quando o fluxo de escravizados da África para o Brasil, acabou.

A demanda que havia por escravizados para trabalhar na agricultura não é mais atendida pelo tráfico. Assim, surgem medidas para forçar a população liberta que mora nas cidades, nas grandes cidades, para ir para o campo. Por isso, historicamente, não havia exatamente um projeto de inserção. Há coincidências históricas que não são exatamente coincidências. A Lei de Terras, por exemplo, que foi aprovada em 1816, é aprovada logo depois da Lei de Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico, e que cria dificuldade para que a população de origem africana seja dona de terras.

Há o Código Penal, por exemplo, que é aprovado logo depois da Lei Áurea, que criminaliza uma série de coisas que têm a ver com a cultura negra, além da figura da vadiagem, por exemplo, que é punida com prisão, que é uma maneira de pressionar a comunidade negra brasileira a aceitar qualquer tipo de emprego.

Para a elite brasileira, o projeto de Brasil ideal significava um país branco. Então, o que você faz com os ex-escravizados? O país não mandou as pessoas embora, mas criava dificuldades de maneira a forçar essas pessoas a irem embora, porque no momento em que o negro está livre no Brasil, ele passa a ser um problema.

Qual influência brasileira ainda permanece nesses locais da costa ocidental da África?

Ainda existem muitos desses traços de brasilidade na África, como na culinária e mesmo na arquitetura. O Benim, provavelmente, é onde a comunidade é a mais coesa, e ainda hoje é a que consegue preservar mais, de forma mais viva, a memória e essas tradições. No Benim, há a celebração da festa de Nossa Senhora do Bonfim.

No caso da Nigéria, eles têm um carnaval, que é um carnaval fora de época, chamado de Careta, que às vezes acontece na Páscoa, no qual há grupos, famílias de origem brasileira que desfilam.

Em Gana, há uma comunidade de origem brasileira, que reconhece que é de origem brasileira. Por lá, os brasileiros eram chamados de Tabon, que, segundo as tradições, vem da expressão "está bom". E os Tabons eram conhecidos no século 19 por serem alfaiates. Então, até hoje, você tem membros da comunidade que são alfaiates, conhecidos por isso.

Mas há um problema geracional. Os que são mais velhos hoje ainda têm um apego maior. Já em relação às novas gerações, essa cultura vem sendo apagada. E como a comunidade de origem brasileira estava associada à escravidão de alguma maneira, que ou você era filho, neto, bisneto de escravizados, ou você era filho, neto, bisneto de traficantes escravizados, em nenhum dos dois casos é muito confortável para o pessoal mais novo.

No livro, você aborda o apagamento da memória de muitas dessas histórias de exilados e retornados aqui no Brasil também. Quais são as principais consequências desse esquecimento para a construção de uma memória coletiva por aqui?

Há, de fato, um esquecimento que eu acho que não é à toa. Ele vem desse processo de inserção da comunidade de origem africana no Brasil, que sempre foi uma coisa problemática. Hoje em dia você tem um esforço maior, que acho fundamental. Você não pode pensar num projeto de país se opta por esquecer uma coisa que foi determinante para a história brasileira.

O Brasil não seria o que é hoje, isso eu acho que é indiscutível, se não fosse o que foi. O que temos hoje é produto de 350 anos de escravidão. O Brasil tem 500 anos de história, mas você tem 350 anos de escravidão. É uma loucura. É muito grande essa participação, em todo sentido.

Se não há memória e não se reconhece o papel dos escravizados da África no Brasil, você não consegue entender o Brasil. Não existe Brasil sem isso. Não existe. E essa história dos retornados é um capítulo pequeno, mas é um capítulo dessa grande história da presença e da participação e da contribuição africana no Brasil.

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