Há anos país vive com medo dos militares e pisa em ovos para que eles "não se chateiem". Precisamos, finalmente, quebrar esse ciclo para que os horrores da ditadura não se repitam.
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"Não é maravilhoso que os jovens estejam finalmente descobrindo o que aconteceu na ditadura militar?": uma amiga me mandou essa mensagem comemorando o fato de que, nas redes e nas conversas, os jovens (e boa parte da sociedade brasileira) estão revoltados com os crimes praticados na ditadura militar, período horroroso da história que se seguiu ao golpe de 1964.
Isso acontece por causa do sucesso do filme Ainda estou aqui, que conta a história da família do engenheiro e deputado federal Rubens Paiva, morto na tortura e "desaparecido" em 1971. O filme, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do engenheiro, e dirigido por Walter Salles, colocou o Brasil cara a cara com a ditadura. Que coisa boa ver todo mundo lembrando do passado e muitos jovens curiosos sobre essa "página infeliz da nossa história".
É extremamente necessário que estejamos olhando para a ditadura e conversando sobre isso. Em quase todas as entrevistas, Marcelo e seus familiares, assim como o elenco do filme, repetem: "É preciso lembrar para que não se repita".
Depoimento de Ida Schrage
05:14
É verdade. E isso nunca foi tão óbvio. O país não rememorou o suficiente, jamais puniu os militares e banalizou a ditadura. E por isso quase sofreu um golpe militar de novo. O plano golpista foi revelado semana passada pela Polícia Federal e mostra que um grupo que incluiria o ex-presidente Jair Bolsonaro teria planejado dar um golpe de Estado no Brasil em dezembro de 2022. Além de tomar o poder por meio da força e dos tanques, segundo o relatório da PF, eles pretendiam assassinar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do STF Alexandre de Moraes.
A Polícia Federal indiciou Bolsonaro e mais 36 pessoas por tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado democrático de Direito e formação de organização criminosa. Dos 37 indiciados, 25 são militares. Entre eles estão Augusto Heleno, general da reserva, que foi capitão na ditadura militar e ministro de Segurança Institucional do governo Bolsonaro, e Walter Braga Netto, também general da reserva e ex-ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro. A mesma operação prendeu preventivamente cinco pessoas. Quatro delas eram militares.
Ou seja, no ano em que todos falam sobre ditadura, soubemos que escapamos por pouco de outro golpe militar ao estilo do de 1964.
Como chegamos a isso? Em parte, porque por muito tempo, os horrores da ditadura foram deixados embaixo do tapete e muitos absurdos foram banalizados. Os militares golpistas e os torturadores de Rubens Paiva (e de muitos outros brasileiros) foram anistiados em 1979 e até hoje seus familiares desfrutam de generosas pensões. Segundo levantamento do portal UOL, só os torturadores de Rubens Paiva ganham cerca de R$ 1,8 milhão por ano de pensão.
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Glorificação de torturadores
Além de não haver punição, os horrores foram totalmente banalizados.
Entre os bolsonaristas mais radicais, virou quase moda usar uma camiseta com o rosto e o nome de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos piores torturadores da ditadura e ex-chefe do DOI-Codi, uma casa dos horrores. Em 2016, na noite do impeachment de Dilma Rousseff (a ex-presidente foi barbaramente torturada na ditadura), Jair Bolsonaro, então deputado federal, dedicou seu voto a "Carlos Alberto Ustra, o terror de Dilma Rousseff". Sim, ele glorificou um torturador e fez piada com a tortura de Dilma em pleno microfone, com transmissão em rede nacional. De novo. E nada aconteceu. Ficou por isso mesmo. Deu no que deu. O fã de torturador queria, segundo a PF, dar um golpe junto com os militares.
E agora? A única alternativa decente para que o país não se torne definitivamente um antro golpista é que todos os envolvidos nos planos antidemocráticos e terroristas paguem criminalmente pelos seus crimes, independentemente de patente, de cargo político que já ocuparam ou do número de seguidores que têm nas redes sociais.
Se isso não acontecer, ficaremos presos para sempre nesse ciclo do horror, onde os governos têm medo de punir os militares e "desagradar as tropas". Como disse Marcelo Rubens Paiva em entrevista para a DW, "nós sempre vivemos nessa espécie de chantagem dos militares contra nós, os civis, que deveriam ser quem manda naqueles que têm armas."
É verdade. Há anos e anos o país vive com medo dos militares e pisando em ovos para que eles "não se chateiem". O Brasil precisa, finalmente, quebrar esse ciclo abusivo. Chega de varrer os crimes dos militares para debaixo do tapete. É preciso lembrar e punir para que o horror não se repita para sempre.
A ditadura brasileira (1964-1985)
Regime militar que sufocou a democracia se estendeu por 21 anos. Período foi marcado por perseguições, tortura, censura, crescimento e derrocada econômica.
Foto: Arquivo Nacional
A perseguição política
A perseguição de adversários se concentrou nos meses após o golpe de 1964 e entre o final da década de 60 e início dos anos 70. Mais de 5 mil pessoas foram alvo de punições como demissões, cassações e suspensão de direitos políticos. Ao todo, 166 deputados foram cassados. O regime também perseguiu membros em suas fileiras. Pelo menos 6.951 militares foram presos, desligados e presos.
Foto: Arquivo Nacional
Assassinatos e desaparecimentos
Assim como a perseguição política, os assassinatos de opositores promovidos pelo regime se concentraram em algumas fases da ditadura. Mas todos os generais-presidentes foram tolerantes com a prática. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou a responsabilidade do regime militar pela morte de 224 pessoas e pelo desaparecimento de 210 – 228 delas morreram durante o governo Médici (1969-1974).
Foto: Arquivo Nacional
Tortura
Na ditadura, a tortura virou uma prática de Estado. Já no governo Castelo Branco (1964-1967) foram apresentadas 363 denúncias de tortura. Na fase de Médici (1969-1974), seriam mais de 3.500. O relatório "Brasil: Nunca Mais" lista 283 formas de tortura aplicadas pelo regime, como afogamentos, choques elétricos e o pau de arara. Ao longo de 21 anos, houve mais de 6 mil denúncias de tortura.
Foto: Arquivo Nacional
A luta armada
Ao dar o golpe, os militares citaram a corrupção e o esquerdismo do governo Jango. A luta armada, às vezes apontada como razão de ser da ditadura, nem foi mencionada. Só em 1966 ocorreram as primeiras ações relevantes de grupos de esquerda, que cometeriam atentados e assaltos com o objetivo de promover uma revolução. Em 1974, todos já haviam sido aniquilados, mas a ditadura duraria mais uma década
Foto: Arquivo Nacional
Os atos institucionais
O regime militar recorreu a uma série de decretos chamados atos institucionais para manter seu poder. Entre 1964 e 1969 foram promulgados 17 atos, que estavam acima até da Constituição. Alguns promoveram a cassação de adversários (AI-1) e a extinção dos partidos políticos existentes (AI-2). O mais duro deles, o AI-5, instituiu em 1968 a censura prévia na imprensa e a suspensão do "habeas corpus".
Foto: Arquivo Nacional
A censura
Boa parte da imprensa apoiou o golpe, mas vários jornais passaram a criticar o regime, alguns mais cedo, outros mais tarde. Com o AI-5, passou a vigorar uma censura prévia em vários meios de comunicação. O regime censurava até más notícias, promovendo uma imagem fictícia da realidade do país. Epidemias, desastres e atentados eram temas vetados. Músicas, filmes e novelas também foram censurados.
Foto: Arquivo Nacional
Colaboração com outras ditaduras
Junto com os regimes da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, a ditadura brasileira integrou a Operação Condor, uma aliança para perseguir opositores no Cone Sul. O regime também ajudou a treinar oficiais chilenos em técnicas de tortura. Um dos casos mais notórios de colaboração foi o sequestro em 1978 de dois ativistas uruguaios em Porto Alegre, que foram entregues ao país vizinho.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
O milagre econômico...
Após três anos de ajustes, os militares promoveram a partir de 1967 investimentos e oferta de crédito. A fórmula deu resultados. Entre 1967 e 1973, a expansão do PIB brasileiro foi de 10,2% ao ano. O país passou a ser a décima economia do mundo. O crescimento aumentou a popularidade do regime durante a fase mais repressiva da ditadura. Mas o "milagre brasileiro" duraria pouco.
Foto: Arquivo Nacional
... e a derrocada econômica
A conta do "milagre" chegou após os dois choques do petróleo e uma série de decisões desastradas para manter a economia aquecida. Ao fim da ditadura, o país acumulava dívida externa 30 vezes maior que a de 1964 e inflação de 225,9% ao ano. Quase 50% da população estava abaixo da linha de pobreza. Os militares pegaram um país com graves problemas econômicos e entregaram um quebrado.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Corrupção
A censura e a falta de transparência favoreceram a corrupção. O período foi marcado por vários casos, como o Coroa-Brastel, Delfin, Lutfalla e a explosão de gastos em obras. O regime promoveu e protegeu figuras como Paulo Maluf e Antônio Carlos Magalhães, que já nos anos 70 eram suspeitos em casos de corrupção. Também abafou casos, como a compra superfaturada de fragatas do Reno Unido nos anos 70.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Grandes obras
A ditadura promoveu obras faraônicas, divulgadas com propaganda ufanista, como Itaipu e a ponte Rio-Niterói. Algumas foram marcadas por desperdícios e erros, como a Transamazônica e as usinas de Angra. Em 1969, o regime criou uma reserva de mercado para as empreiteiras nacionais ao proibir a atuação de estrangeiras. É nessa época que empresas como a Odebrecht passam a dominar as obras no país.
Foto: Arquivo Nacional
Anistia e falta de punições
Em 1979, seis anos antes do fim da ditadura, foi promulgada a Lei da Anistia, perdoando crimes cometidos por motivação política. Mas ela tinha mão dupla: garantiu também a impunidade para agentes responsáveis por mortes e torturas. No Chile e na Argentina, dezenas de agentes foram condenados por violações de direitos humanos após a volta da democracia. No Brasil, ninguém foi punido.