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Brasil, refém das mentiras

Philipp Lichterbeck
Philipp Lichterbeck
11 de junho de 2020

Jair Bolsonaro é o aluno mais aplicado de Trump, que não inventou a mentira, mas a tornou normal. Em nenhum outro lugar, inverdades e táticas destrutivas da extrema direita encontram terreno tão fértil quanto no Brasil.

Protesto contra Bolsonaro em BrasíliaFoto: Getty Images/A. Anholete

O Brasil foi apanhado numa teia de mentiras. Frequentemente, elas são chamadas de "fake news". Mas o termo obscurece o seu poder destrutivo. Elas minam a coesão social, criam conflitos, brigas e incertezas. É isso que o bolsonarismo quer. Ele vive do conflito, é o seu combustível. Sem conflitos, ficaria parado.

Tudo começou com Donald Trump. Ele não inventou a mentira, mas a tornou normal. Para ele, a verdade não é um valor em si, só interessa o que é útil. Hoje, isso pode significar que 1 + 1 = 2. Mas se Trump quiser, ele dirá amanhã que o resultado é 3. Haverá pessoas que o defenderão, claro. A emissora Fox News indagará se pode haver algo de verdade nisso, e os apresentadores falarão de "fatos alternativos".

O aluno mais aplicado de Trump é Jair Bolsonaro. E no Brasil, o resultado não seria diferente. Na CNN Brasil ocorreria um debate em que um comentarista jovem e eloquente argumentaria que não se pode excluir que 1 + 1 fosse 3 – e que a esquerda teria tido a hegemonia sobre esse discurso por tempo demais. A milícia digital de Bolsonaro, formada por blogueiros, youtubers e operadores de portais de notícias, inundaria a internet em pouco tempo com centenas de vídeos, fotos, textos e estudos "científicos" que mostrariam claramente que 3 é a resposta certa.

Pode parecer um exagero, mas o Brasil não está longe dessa situação. O governo brasileiro omite o número de mortos por covid-19 e divulga suas próprias informações alternativas. O presidente Bolsonaro inclusive prometeu a uma mulher uma reunião no Ministério da Saúde para que ela exalte o alho cru como cura para covid-19. Ela disse ter recebido a sua visão de Deus. Não se pode descartar até que Bolsonaro fará dessa mulher a nova ministra da Saúde. Damares Alves e Abraham Weintraub também são ministros. Estou convencido que, exatamente para pessoas como eles, o matemático britânico Bertrand Russell escreveu sua famosa frase: "O problema do mundo é que os inteligentes estão cheios de dúvidas, e os idiotas estão cheios de certezas."

Talvez haja leitores que riam agora. Mas a luta da neodireita contra a verdade e a ciência tem realmente algo diabólico. Ela torna a comunicação impossível. Como uma sociedade pode encontrar respostas para problemas sérios se existem pessoas que afirmam que os problemas nem existem?

Imagine um vilarejo onde irrompe um surto de cólera. Em vez de garantir que as pessoas obedeçam as regras de higiene e tenham acesso à água limpa, o líder local afirma que se trata apenas de uma diarreia, dizendo que pessoas más estão espalhando a "mentira da cólera" para prejudicá-lo. Ele não só impede uma resposta racional, como divide a comunidade. No final, todo mundo sai perdendo.

A extrema direita usa essa tática em quase todos os temas atuais, seja na mudança climática, na covid-19, no racismo ou no desmatamento da Floresta Amazônica. Ela afirma que nada disso existe ou que se trata de um exagero. Ela semeia a dúvida. E usa as possibilidades da internet engenhosamente para se inflar e parecer muito maior. A plataforma Bot Sentinel identifica contas falsas no Twitter. "Identifiquei 824 tuítes mencionando #FechadocomBolsonaro que foram tuitados por contas não autênticas." São dezenas de alertas desse tipo que a plataforma reporta quase todos os dias.

Não é exagero afirmar que a extrema direita tenta destruir os fundamentos do conhecimento. Eles são uma das garantias de estabilidade nas sociedades liberais e esclarecidas. Mas para a direita bolsonarista não deve haver mais consenso sobre nada, nem mesmo que a Terra é redonda. Tudo serve de combustível para teorias da conspiração. O resultado é uma incerteza extrema e generalizada – que facilita a manipulação. "Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer", disse Jair Bolsonaro em março de 2019, nos Estados Unidos. Para mim era uma das frases chaves e mais assustadores do projeto bolsonarista. Hoje vemos o resultado na Saúde, na Educação, na Amazônia e na Cultura. Nos escombros do antigo, surge então o sonho extremista de direita: uma sociedade militarizada e uniformizada, na qual existem apenas homens e mulheres heterossexuais, bem como cidadãos sem identidades como negros, indígenas, sem-terra, ribeirinhos. Todos impelem a economia disciplinadamente e saúdam a bandeira.

Em nenhum outro lugar, essa tática de destruição é tão bem-sucedida até hoje quanto no Brasil. Em nenhum outro lugar, as mentiras da direita encontram terreno mais fértil. Em 2019, a Universidade Northwestern, em Illinois, constatou que 62% dos brasileiros se deixam frequentemente enganar por mentiras que circulam na internet. Uma investigação realizada pela plataforma Avaaz mostrou neste ano que 72% acreditam em pelo menos uma notícia falsa sobre a covid-19.

Algumas semanas atrás, um dos apoiadores do presidente expressou no Twitter a relação entre o bolsonarismo e a verdade. Escreveu: "Pelo meu direito de falar o que quiser, de ofender quem eu quiser, de mentir, se eu quiser, de falar coisas idiotas ou absurdas."

O direito à liberdade de expressão não é visto por esse homem como um bem valioso aliado a uma responsabilidade. Para ele, trata-se do direito de mentir. No seu perfil, o homem se descreve como "conservador, empresário, casado, cristão reformado e amante da liberdade." Ninguém quer de bom grado ser parente ou amigo de alguém assim. Mas são pessoas como ele que estão dando o tom no Brasil atualmente.

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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais na Alemanha, Suíça e Austria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

 

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Cartas do Rio

Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio de Janeiro, em 2012. Na coluna Cartas do Rio, ele faz reflexões sobre os rumos da sociedade brasileira.