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Brasileira relata drama de ter sido traficada para Espanha

29 de setembro de 2024

Transformada em livro, história da ativista evidencia "exportação" de pessoas para prostituição e pornografia. Kamila foi vendida a rede criminosa aos 14 e explorada em mais de 15 países durante três décadas.

Kamila Ferreira deita em banco de pedra em parque, em meio a árvores
Kamila Ferreira viveu por anos em bancos de praça nas Ilhas Canárias, território espanholFoto: Privat

Kamila Ferreira* se define como uma fênix, pois ressurgiu das próprias cinzas. Seu olhar deixa transparecer que viveu mil vidas em um só corpo, carregado de cicatrizes eternas, assim como sua alma.

Ela nasceu e viveu até os 14 anos em uma favela de São Paulo. Prefere não revelar o nome do lugar, por temer represálias contra sua família – por mais que ela tenha cortado relações –, já que a organização criminosa que lhe roubou a infância ainda hoje atua por lá.

Kamila nasceu em um ambiente disfuncional; seu pai era alcoólatra e teve filhos com várias mulheres, muitas das quais eram vizinhas e até amigas de sua mãe. "Ela era tão apaixonada por ele que sempre o perdoou por todas as suas infidelidades", lembra. Ela relata que pai nunca morou na casa porque seu avô não o queria, por ser negro.

Sua primeira infância foi cercada de violência. Dentro de casa, o ambiente era de machismo e abuso. Apanhava a ponto de faltar à escola por longos períodos. Do lado de fora, gangues de traficantes dominavam as ruas movimentadas e estreitas.

Ainda muito jovem, ela começou a ser estuprada pelo irmão mais velho. Após a morte do irmão mais novo, aos sete anos de idade, por leucemia, seu futuro parecia condenado ao sofrimento e à marginalização.

"Fiz xixi na cama até os treze anos de idade, porque tinha medo de ir ao banheiro fora de casa à noite. A favela era um lugar muito perigoso, à noite era possível ouvir brigas ou tiros distantes. Por causa disso, quase todas as manhãs eu era agredida psicológica ou fisicamente pela minha família, eles me chamavam de suja ou imunda, puxavam meu cabelo e esfregavam meu rosto no colchão cheio da minha própria urina", relata em seu livro autobiográfico.

Kamila Ferreira quando criança, ao lado de um dos irmãos Foto: Privat

"Após a morte do meu irmão, começaram a circular boatos na favela [de que seu irmão havia morrido e que sua mãe não podia trabalhar porque havia adoecido], e alguns rapazes vieram à minha porta oferecendo um emprego de babá para minha família. Sem pensar, meus avós aceitaram e combinaram um salário mensal para meus avós [que não trabalhavam]”, explica Kamila. Sua mãe era a única provedora da casa. 

Acontece que não havia trabalho de babá, como descreve Kamila.

"Cheguei a um bordel, um daqueles grandes e antigos da época colonial brasileira. Era uma casa de prostitutas de luxo, todas jovens. Eles me deram documentos falsos e, quando eu tinha 14 anos.... Lembro que meu primeiro cliente foi um médico da alta sociedade brasileira. Esse homem tinha idade suficiente para ser meu pai. Passei a atender um, depois outro, e assim por diante", disse Kamila à DW. 

Ainda adolescente, ela foi vendida do Brasil para o Chile, do Chile para o México e do México para a Europa, como se fosse uma mercadoria, como um saco de batatas. À medida que a história avança, Kamila reabre as feridas causadas pelo tráfico de pessoas e pelas redes de contrabando.

É quase impossível não se perguntar como uma menor de idade cruzou tantas fronteiras internacionais, até mesmo intercontinentais, com documentos falsos, sem ser detectada. Kamila conta como, há muitos anos, conseguiu entrar no aeroporto Adolfo Suárez Barajas, em Madri, "como uma pessoa normal", usando documentação falsa. "Eles nem olharam para o meu rosto", lembra. Cidadãos brasileiros não precisam de visto para entrar na Espanha para visitas de curto prazo (turismo, negócios e trânsito).

Kamila em esquina onde costumava se prostitiuir, na cidade de Santa Cruz de Tenerife Foto: Privat

Espanha, principal destino do tráfico de mulheres

Infelizmente, o caso de Kamila não é isolado. A Espanha continua sendo um local estratégico para o tráfico de pessoas, tanto como país de trânsito como de destino.

De acordo com o ministério espanhol da Igualdade, em 2023, foram identificadas 1.466 vítimas de tráfico e exploração, incluindo 18 menores, e foram realizadas 409 investigações, resultando na prisão de 923 pessoas e no desmantelamento de 109 organizações criminosas. A maioria das vítimas de exploração sexual são mulheres, a maior parte sul-americanas.

Publicado em 2021, um relatório sobre como o sistema de justiça brasileiro age para reprimir o tráfico internacional de pessoas mostrou que a Espanha foi o país que mais recebeu vítimas traficadas do Brasil (56,94%). 

O documento, elaborado pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foi baseado em 144 ações penais com decisão de segunda instância da Justiça Federal. 

De um total de 714 vítimas citadas nos processos, 92% tinham o Brasil como país de origem. Quase todas as vítimas brasileiras (98%) foram levadas para o exterior ou, pelo menos, houve uma tentativa de encaminhá-las para a prostituição. A maioria dos destinos foi na Europa – além de Espanha, Portugal, Itália e Suíça. Suriname, Estados Unidos, Israel e Guiana também foram destinos escolhidos para o tráfico, segundo o relatório.

As vítimas são transportadas de formas muito variadas. No caso das mulheres africanas, a maioria chega em pequenos barcos ao destino europeu. No caso das latinas, a maioria se desloca de avião, mas também há casos de mulheres que viajam dentro de navios de carga, segundo Kamila. As mulheres vindas da Europa Oriental tendem a chegar de carro, trem ou ônibus.

"Não sabia que estava sendo vítima de tráfico"

O cativeiro de Kamila durou 30 anos e 8 meses e se arrastou por mais de 20 cidades em 15 países.

Por muito tempo, Kamila não tinha consciência de que era vítima de tráfico de pessoas. Ela argumenta que o termo então usado para relatar situações como a que vivia era "escravidão branca", e que ela, portanto, não se enxergava no problema. 

"Se você não fosse branco, se fosse mestiço como eu, ou se fosse negro ou indígena, nunca se identificaria como vítima de tráfico porque, como eu disse antes, era chamado de 'escravidão branca'."

Há muita confusão com os termos dentro e fora da prostituição, pois as mulheres não brancas exploradas sexualmente, até recentemente, não eram identificadas como vítimas de tráfico humano.

Kamila, como a maioria das mulheres prostituídas, era viciada em álcool. Ela se lembra de ter se apaixonado pela primeira vez naquela época, por um cliente, de quem ficou grávida. Quando descobriu que estava esperando um bebê, parou de beber.

"Ele queria que eu fizesse um aborto e me disse para escolher entre ele e o bebê. Obviamente, escolhi o bebê, e ele me jogou na rua. Eu me vi em um país, grávida, sem documentos, esperando um bebê. Tudo o que fiz foi pedir a Deus que me protegesse e me ajudasse. Hoje, graças a Deus, minha filha está com 19 anos. Consegui seguir em frente", lembra.

Abandonada e sem apoio, a rua se tornou seu refúgio. Todos que ela conhecia lhe deram as costas, desde seu cafetão até o pai de seu filho. Durante os nove meses de gravidez, cheia de medo e incerteza, ela foi abrigada em um centro social em Tenerife, nas Ilhas Canárias. No entanto, devido à importunação de um homem que morava no mesmo lugar, ela decidiu sair e se refugiar no parque García Sanabria. Lá, sua vida aconteceu entre bancos, por dias e noites.

Uma vida na solidão

Brigas de rua, golpes, maus-tratos, violência física, traição, desgosto são algumas das experiências que acompanham milhares de mulheres traficadas em todo o mundo.

De acordo com a OIM, 206 mil vítimas de tráfico humano foram identificadas em todo o planeta entre 2002 e 2022. Em 2022, houve 15,3 mil registros de vítimas – número que manteve a tendência de queda observada desde 2019 devido ao fechamento de locais durante a pandemia de covid-19.

A proporção de vítimas de tráfico humano identificadas como mulheres, no entanto, seguiu alta, com 75% do total; 65% do total de vítimas, ou 6,7 mil, foram traficadas para fins de exploração sexual.

Os dados da OIM consideram também o fato de que vítimas identificadas como sendo de exploração sexual podem ser vítimas de trabalho forçado ao mesmo tempo, o que pode alterar os cálculos das proporções.

De acordo com o relatório mais recente do Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil, divulgado em julho deste ano com dados compilados entre 2021 e 2023, a exploração sexual é a segunda principal forma de tráfico de pessoas no país, atrás da exploração do trabalho.

Na Espanha, entre 25 mil e 30 mil pessoas estão atualmente envolvidas com prostituição no país, de acordo com Miguel Ángel del Olmo, coordenador nacional da associação In Género. A atividade ocorre em cerca de 800 clubes, 2.500 apartamentos e mais de 40 pontos de prostituição de rua. Entre 15% e 20% desse total são de vítimas de tráfico humano, segundo dados publicados no jornal online espanhol Artículo 14, cuja cobertura é focada nos direitos das mulheres. É muito difícil elaborar estatísticas sobre pessoas traficadas, já que se trata de um crime que busca mantê-las anônimas, sem deixar rastros.

Segundo o mesmo levantamento, o Brasil é a sexta nacionalidade mais frequente na prostituição na Espanha, com 6%. As principais são Colômbia (21,9%), Paraguai (15,5%), República Dominicana (13,4%), Venezuela (7,8%) e Romênia (7%).

Kamila em frente a mural onde se concentrava a maior parte das trabalhadoras do sexo em Santa Cruz de TenerifeFoto: Privat

Saída da prostituição

Kamila fez parte dessas estatísticas até 2019, quando tudo mudou em sua vida.

"Eu estava na rua, eram duas horas da tarde. Eu só tinha ganhado 20 euros, e às sete da noite tinha que dar 300 euros ao meu cafetão", relembra.

"Comecei a chorar porque estava desesperada. Se eu não pagasse essa dívida, ela aumentaria. Uma senhora espanhola, que era voluntária de uma ONG, estava passando por aquela rua e me viu chorando. Ela passou como se estivesse com medo, mas sua curiosidade foi mais forte e ela me perguntou por que eu estava chorando", conta.

Kamila falou da sua situação à mulher, que a ouviu atentamente. A senhora a convidou para tomar um café e continuar a conversa, mas Kamila se recusou, pois não podia sair de seu posto sem pagar ao cafetão.

"Ela foi e perguntou ao cafetão o preço para me levar por duas horas. Ela pagou, fomos para um terraço, tomamos um drinque, e em duas horas eu resumi minha vida para ela... Ela me perguntou o que eu sabia fazer, e eu disse que, apesar de ter sido prostituta a vida toda, eu sabia lavar, passar, cozinhar, limpar, e ela me deu uma chance."

Espanha, a "Tailândia europeia"

Mais de três décadas imersa no sufocante mundo da prostituição levaram Kamila a escrever seu primeiro livro, chamado Espanha, a Tailândia Europeia. A obra será publicada até o fim do mês.

O título vem da semelhança que ela encontrou entre o país asiático e o europeu. Para Kamila, a única diferença é que, na Tailândia, a prostituição é vista abertamente nas ruas, independentemente da idade das mulheres, enquanto que, na Espanha, ela é mais escondida.

"Para mim, toda a Europa é como um tapete elegante, bonito aos olhos do mundo, mas toda a sujeira está escondida por baixo." O país ibérico é mundialmente famoso por sua rica gastronomia, praias deslumbrantes e cultura vibrante, mas também enfrenta o lado sombrio do crescente turismo sexual, uma realidade menos conhecida fora de suas fronteiras. 

"Você não precisa ir ao Brasil, nem mesmo à Tailândia ou à Itália, para procurar uma mulher. Aqui na Espanha você encontra mulheres de todas as nacionalidades, idades, culturas e etnias. É um paraíso sexual, por isso a chamo de Tailândia Europeia", conclui.

*Nome fictício

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