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Brasileiros criam debate que não existe na Alemanha

18 de setembro de 2018

"Nazismo de esquerda": internautas tentam "ensinar" história a alemães após vídeo da embaixada. Discussão levantada aparece há alguns anos em círculos de direita brasileiros, mas nunca existiu entre historiadores sérios.

Adolf Hitler marcha em direção ao Reichstag em Berlim no dia em que tomou posse como chanceler
Adolf Hitler marcha em direção ao Reichstag em Berlim no dia em que tomou posse como chancelerFoto: General Photographic Agency/Getty Images

"Os alemães não escondem seu passado", diz a frase inicial de um vídeo com legendas em português publicado pela Embaixada da Alemanha em Brasília no Facebook há pouco mais de dez dias.

O que era para ser mais um vídeo institucional para divulgar como a sociedade alemã lida hoje com o nazismo e o Holocausto acabou virando, em meio à polarização pré-eleições, palco de ataques de militantes de direita brasileiros que não gostaram do conteúdo da peça. 

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Tudo porque um trecho classifica o nazismo como uma ideologia de extrema direita e cita uma frase do ministro do Exterior alemão, Heiko Mass, que diz: "Devemos nos opor aos extremistas de direita, não devemos ignorar, temos que mostrar nossa cara contra neonazistas e antissemitas." 

Para militantes brasileiros que passaram a escrever na caixa de comentários do vídeo, a embaixada e o ministro alemão estão errados em classificar o nazismo como um movimento de "extrema direita".

"Extremistas de direita? O partido de Hitler não se chamava Partido dos Trabalhadores Socialistas? Onde tem extrema direita?", disse um usuário, apelando incorretamente para o nome oficial da agremiação nazista, que se chamava Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, ou NSDAP. 

Outro disse: "Vindo do país de origem do Marxismo, tendo a Alemanha sido infestada por vermelhinhos no pós-guerra (...) é claro que eles vão distorcer tudo e jogar na conta da direita." Uma rápida olhada nos perfis dos usuários que associaram o nazismo com a esquerda mostra que vários divulgam propaganda do candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL). 

Entre algumas páginas e círculos de direita brasileiros, muitos deles pró-Bolsonaro, tem sido comum nos últimos anos tentar classificar o nazismo como um "movimento de esquerda". O principal argumento para defender a tese leva em conta a presença do termo "socialista" no nome do partido. 

"Se essa for a lógica, então eles também têm que afirmar que a República Democrática da Coreia (Coreia do Norte) é uma democracia e que o mesmo valia para República Democrática Alemã (antiga Alemanha Oriental comunista)", afirma o cientista político alemão Kai Michael Kenkel, professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e pesquisador associado do Instituto Alemão de Estudos Globais e Regionais (Giga).

Outro argumento usado pelos propagadores da ideia do "nazismo de esquerda" também aponta para o caráter antiliberal na economia do Terceiro Reich e as características estatistas de setores do regime. A comparação ignora que regimes de direita como a ditadura militar brasileira (1964-1985) ou o antigo governo franquista da Espanha também eram estatistas, antiliberais e favoreciam uma espécie de capitalismo a serviço dos interesses nacionais, assim como o nazismo. 

"Nunca tinha visto essa discussão sobre o nazismo ser de esquerda na Alemanha", afirma Kenkel. "Lá é muito simples: trata-se de extrema direita e pronto. Essa discussão sobre ser de esquerda ou direita parece existir só no Brasil. Se você perguntar para um neonazista na Alemanha se ele é de esquerda, vai levar uma porrada", continua. "Essa falsa polêmica demonstra que o ensino de história no nível básico é profundamente falho no Brasil. Também mostra uma profunda manipulação dos fatos e um desprezo pela verdade entre alguns setores no Brasil."

Outros usuários que comentaram no vídeo foram até mais longe, chegando a negar o Holocausto e chamar o extermínio de milhões de judeus durante o nazismo de "holofraude". "Os supostos 6 milhões existem desde 1915 como propaganda sionista, só que não existia um culpado certo e acharam um em 1945", disse um comentarista. O teor desse tipo de comentário levou a embaixada a reagir e responder "que o Holocausto é um fato histórico".

Mas não só militantes que contestaram o vídeo encheram a caixa de comentários. Centenas de brasileiros também mostraram repúdio às declarações dos militantes de direita.

"Querem ensinar o padre a rezar a missa", disse um usuário. "Todo dia um a 7 a 1 diferente", disse outro. Vários pediram "desculpas" à embaixada da Alemanha pelo comportamento de alguns de seus compatriotas. 

Na tarde desta segunda-feira (17/09), o vídeo já havia sido compartilhado 16 mil vezes e tinha mais de mil comentários. O Consulado-Geral da Alemanha no Recife também publicou a peça, e a reação foi similar: 20 mil compartilhamentos e 1.500 comentários. 

Nazismo

A versão de que o nazismo seria uma ideologia de esquerda vem se espalhando há alguns anos entre páginas de direita brasileiras. Desde os anos 2000 o filósofo Olavo De Carvalho vem divulgando essa visão para seus seguidores.

O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL), filho do candidato à Presidência Jair Bolsonaro, também afirmou em 2016 no Twitter que o "nazismo é esquerda" e usou o argumento sobre a presença da palavra "socialista" no nome do partido. Desde então, voltou ao tema várias vezes nas redes sociais sempre apontando que o nazismo está no campo da esquerda. 

Recentemente, a associação do nazismo com a esquerda ganhou até mesmo adesão em páginas brasileiras de viés liberal que passaram a adotar posições mais conservadoras. 

Em 2017, o direitista Movimento Brasil Livre (MBL) publicou um vídeo em que o ativista Kim Kataguiri diz que Hitler não "era de direita", mas concedia que o nazismo também "não era de esquerda" e finalizava com um raciocínio confuso em que apontava que o nacional-socialismo seria uma espécie de "terceira via" totalitária. Vários comentaristas não gostaram que o líder do MBL não classificou o nazismo como meramente de "esquerda" e o acusaram de ser um "isentão" que se deixou levar pela “conversa de esquerdistas". 

Nos EUA, o assunto também surge em páginas de redes sociais, mas praticamente nunca foi abordado na grande imprensa e permanece relegado a páginas de direita ou fóruns. No Brasil, no entanto, algumas revistas e sites da imprensa, como o UOL, G1, Galileu, Superinteressante já abordaram a discussão e divulgaram a opinião de historiadores. Em 2015, o filósofo Leandro Karnal também abordou o assunto em um texto. Outros veículos, como o site InfoMoney e o jornal Gazeta do Povo, abriram espaço para propagadores da associação.   

Na Alemanha, as poucas referências a uma discussão pública sobre o assunto na imprensa remetem a um episódio de 2012 que envolveu a ex-deputada conservadora Erika Steinbach. Na ocasião, ela disse no Twitter que o "vocês esqueceram? O nazismo era de esquerda". Ela foi duramente criticada pela imprensa e historiadores. Anos depois, ela deixou a União Democrata-Cristã (CDU) e passou a apoiar o partido populista Alternativa para a Alemanha (AfD), que recentemente organizou manifestações xenófobas no leste da Alemanha que contaram com a presença de neonazistas. 

Na Alemanha, a disputa sobre se o nazismo é uma ideologia que pode ser classificada nas convenções clássicas de direita ou esquerda é praticamente inexistente entre historiadores renomados. Os livros sérios sobre o Terceiro Reich e Adolf Hitler no país traçam a origem do movimento nazista entre as tendências racistas e nacionalistas de certos setores da sociedade alemã e a ação dos Freikorps, os grupos de paramilitares de direita que se espalharam pela Alemanha após a derrota na Primeira Guerra Mundial e que combatiam grupos de esquerda, especialmente comunistas e social-democratas. 

Historiadores apontam algumas características socialistas do regime nazista para conquistar a classe trabalhadora, mas salientam que elas eram apenas um mecanismo para garantir a adesão para o verdadeiro ideal do nazismo: a luta pela supremacia da raça ariana no mundo. "Hitler nunca foi socialista", apontou o historiador britânico Ian Kershaw na sua monumental biografia de Hitler.

Esse tipo de tática não era incomum na história alemã. Décadas antes de Hitler, o chanceler Otto von Bismarck criou na Alemanha o primeiro Estado de bem-estar social do mundo com o objetivo de garantir a lealdade da classe trabalhadora ao novo Reich alemão e esvaziar o programa do Partido Social-Democrata. Bismarck, um latifundiário, monarquista e reacionário prussiano nunca é chamado de esquerdista ou socialista. 

Da mesma forma, os nazistas, que se diziam anticapitalistas, defenderam a propriedade privada e se aliaram com industriais. Mas o funcionamento de uma economia capitalista no nazismo só era tolerado se o Estado, e não o mercado, ditasse a forma de desenvolvimento econômico que tinha como objetivo final garantir a manutenção de uma máquina de guerra e a prosperidade apenas dos alemães.  

Se há uma disputa sobre a natureza do nazismo na Alemanha, ela se restringe em apontar se o movimento foi uma aberração na história alemã, influenciado pelo contexto instável da época, ou resultado de uma espécie de "Sonderweg" (caminho especial) dos alemães, ou seja, algo que vinha nascendo há décadas ou talvez séculos entre um povo que estava acostumado a obedecer, que tinha tendências antissemitas e que via com desconfiança influências do exterior. 

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