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Entrevista

Soraia Vilela21 de outubro de 2008

Roberto Cabot, que participa da mostra "Trópicos", em Berlim, fala a DW-WORLD.DE sobre o uso da tecnologia em seu trabalho e discorre sobre o atual significado das fronteiras para o indivíduo.

O artista brasileiro em BerlimFoto: Tim Deussen / www.fotoscout.de

No catálogo que acompanha a exposição "Trópicos", no Martin-Gropius-Bau, em Berlim, o artista brasileiro Roberto Cabot assina o texto Da banana ao TotalFlex. A banana, no caso, é aquela do sonho de consumo do alemão oriental antes da Queda do Muro, para o qual esta fruta "tropical" era quase um símbolo de status. Acessível para os ricos "do outro lado" (os ocidentais), mas objeto do desejo não saciado do lado comunista.

Cabot parte daí para descrever a relação ambígua que o europeu mantém, há séculos, com os trópicos. Num contexto em que "coerente com a própria natureza, o termo tropical continua aparentemente tão vago e indefinível como tudo o que descreve".

Síndrome do ar-condicionado

O artista esboça a trajetória dos trópicos no imaginário europeu desde a colonização da região, ocorrida "em perfeita desordem", passando por Lévi-Strauss, até a síndrome brasileira do ar-condicionado como a negação da "desagradável" sensação de estar num país tropical: "quanto mais frio o ar-condicionado, mais longe se está dos trópicos, sempre associados ao subdesenvolvimento na mentalidade das elites colonizadas", observa Cabot.

Em sua análise, depois de passar pela herança de Hélio Oiticica, pelo Tropicalismo e por Macunaíma, o artista assinala como a "dualidade confusa" e a "indefinição de limites e contornos" próprias dos trópicos costumam representar um problema, quando se espera "que as coisas funcionem conforme o princípio de realidade anglo-saxão".

Ao encerrar, o artista resgata uma notícia da imprensa alemã para lembrar que, não faz muito tempo, uma comitiva de técnicos alemães da Volkswagen fez uma viagem a São Paulo para aprender como funcionava no país, há anos, o motor movido a gasolina e álcool com o sistema de combustão TotalFlex. É com ele, ou melhor, com ela, com a "flexibilidade total", que vai do combustível ao dia-a-dia, que Cabot fecha sua lúcida análise do significado dos trópicos sob o olhar europeu. Leia abaixo a íntegra da entrevista do artista a DW-WORLD.DE.

DW-WORLD.DE: Um dos conceitos da mostra "Trópicos" é a opção em colocar a arte contemporânea ao lado de objetos do Museu Etnológico de Berlim. A tendência em misturar arte contemporânea e antiga já pôde, entre outros, ser observada na última documenta de Kassel. De que forma você acredita que a sua obra dialoga com a arte antiga dentro da exposição?

Roberto Cabot: Quando estudava na Beaux-Arts em Paris, trabalhei na montagem da exposição Les Magiciens de la Terre do curador Jean-Hubert Martin, que foi a primeira tentativa de expor arte "etnológica" com arte contemporânea. Na época, houve grande polêmica, e em geral creio que não foi bem aceito. Isso aconteceu nos anos 80 e considerava-se que eram universos inconciliáveis, que não se podia interpretar a arte contemporânea e a arte dita etnológica com os mesmos critérios.

Acho que hoje as questões colocadas por essa convivência são muito atuais e pertinentes. Entre elas está a questão da autoria e do copyright, já que as obras do Museu Etnológico são anônimas e algumas obras contemporâneas só têm significado em função da assinatura. Não acredito que essas obras não tenham autor, o que acontece é que são obras coletivas, quem realizou essas esculturas tinha consciência de ser parte de um tecido cultural e social, de uma rede. O que ele fazia (ou faz) era a realização de uma soma de conhecimentos e experiências coletivas.

Berlim com Ipanema ao fundo: E-Scapes de Roberto CabotFoto: Roberto Cabot

Meu trabalho é baseado na rede, é uma reconfiguração de técnicas e infra-estruturas coletivas, trabalho com imagens das quais não sou o autor e que se encontram disponíveis na internet. Além disso, meu trabalho se contrapõe ao universo mítico-xamânico das obras anônimas, expondo o mito ocidental da objetividade da câmera (portanto da técnica), que supostamente tudo vê, tudo revela.

A mostra Trópicos pretende apresentar uma "visão do centro do globo", tendo, no entanto, uma curadoria européia. Isso, na sua opinião, filtra uma perspectiva que é supostamente "dos trópicos"?

Creio que a curadoria propõe uma reflexão sobre a visão, ou a fantasia, dos europeus sobre os trópicos. A própria noção de trópicos está sendo questionada na exposição: o que é esse conceito? É geografia? Botânica? Cultura? Será uma projeção libidinosa? No texto que assino no catálogo da exposição, Da Banana ao TotalFlex, falo justamente dessa relação "norte-sul" tão bizarra e do papel da fantasia tropical no imaginário europeu.

Em 2007, você participou do evento Associados – um projeto coletivo que apostava na "desintegração do triângulo artista-curador-público". Essa premissa de quebrar a estrutura do mercado da arte continua, de alguma forma, fazendo parte do seu trabalho?

Mais uma vez o assunto é o funcionamento em rede. O projeto foi desenvolvido coletivamente, o que fiz foi criar uma situação onde as relações que definem a rede do meio da arte ficavam deslocadas por causa da personagem a quem eu outorguei a autoridade de discursar sobre a arte no próprio palco da mesma. Com esse deslocamento, essas relações ficaram mais visíveis.

O que me interessa são os interstícios e as forças misteriosas que agem entre as coisas, a força gravitacional que relaciona as coisas e as pessoas entre si. Tive o privilégio de ter tido intenso contato com Félix Guattari nos anos 80. Os filósofos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela são também fontes de inspiração, eles descrevem maravilhosamente bem o tipo de lógica na qual o meu trabalho se desenvolve.

A interseção entre arte e tecnologia é um dos pilares da sua obra. Você tem vários trabalhos ligados ao uso de câmeras e computadores e outros que não possuem relação direta com outras mídias. Poderia falar sobre essas duas vertentes "paralelas" na sua trajetória?

Venho construindo um corpo de obras que deve ser sempre visto como conjunto. A variação sobre o mesmo tema é um procedimento recorrente na arte, no entanto, o meu processo é mais de diálogo entre trabalhos diferentes, sendo que eles se desenvolvem dentro de um quadro bastante definido de estratégias e temas.

Roberto Cabot brinca com a 'visão dos trópicos'Foto: Roberto Cabot

Para mim não há paralelismo, há simultaneidade e interação entre diversos modos de criar uma experiência. Mesmo quando produzo objetos (pinturas, por exemplo), vejo os mesmos sempre como elementos de uma situação que implica a interação com fatores externos. Não vejo descontinuidade entre a arte e a tecnologia. O que hoje chamamos de "tecnologia" será um dia algo antigo e tradicional, a gravura já foi top da tecnologia, a pintura a óleo representou no Renascimento uma revolução na produção de imagens comparável ao surgimento da imagem digital hoje em dia.

A constante é a poética, a poesis do trabalho e sua integração no projeto geral. Já os meios que o artista vai agenciar para estabelecê-la são circunstanciais. Dito isso, acho difícil ignorar as possibilidades que a técnica hoje oferece, são novos espaços a serem explorados. Ignorar as novas técnicas digitais hoje equivaleria a ignorar o surgimento da fotografia no século 19 ou do cinema no século 20.

Suas fotografias E-Scapes, do projeto Alephology (Berlim 2008), deslocam a arquitetura brasileira para centros europeus e norte-americanos. A favela é colocada ao lado da Torre Eiffel, Berlim tem Ipanema ao fundo e o Pão de Açúcar está refletido na fachada da ONU em Nova York. Poderia falar sobre sua intenção ao eliminar as fronteiras geográficas e simbólicas entre Norte/Sul?

Essas paisagens urbanas vêm do mundo em que vivo, uma mistura de lembranças e fantasias. Todas as imagens são de minha autoria, são lugares em que estive, coisas que vi com meus olhos e fotografei. Desde que nasci estive viajando, vivi em vários países e minha vida se desenvolve simultaneamente em diversos lugares. Imagino que é algo relativamente freqüente hoje em dia, com a globalização bombando há já pelo menos duas gerações. As fronteiras são uma coisa dos Estados, da política. Os indivíduos se movem e se organizam em função de outros critérios, inventam suas próprias fronteiras e vivem outra geografia.

Favela da Maré e Torre Eiffel: desconstrução da simbologia geopolíticaFoto: Roberto Cabot

A herança tanto de Hélio Oiticica quanto de Lygia Clark é uma referência constante na arte contemporânea brasileira, inclusive na sua obra. Quais são os aspectos, em sua opinião, que fazem com que a obra dos dois venha exercendo tamanha influência em várias gerações de artistas no país?

O Hélio e a Lygia são referências constantes a partir de certo momento. Creio que foi justamente minha geração que deu à obra dos dois a atenção que merecia. O que faz deles uma referência é o fato de eles terem traçado perspectivas inéditas, terem aberto caminhos que permitem dizer coisas numa linguagem muito apropriada à nossa maneira de ser. É natural que grandes obras e artistas irradiem a sua influência nas gerações seguintes. Pessoalmente, o que mais me fascina no Hélio são a sua liberdade e eloqüência.

Você passou vários anos fora do Brasil, em vários países e voltou a morar no Rio de Janeiro. Poderia falar a respeito de como essas mudanças geográficas (e culturais) se refletem no seu trabalho?

Nasci no Rio de Janeiro, cresci e vivi em diversos países (Brasil, Argentina, Alemanha, Espanha, EUA, França), os E-Scapes são resultantes desse modo de vida. Sou um filho da globalização. Flexibilidade, adaptabilidade, pluralidade sempre foram qualidades das quais dependia minha sobrevivência. Mudar de país implica reinventar-se, redefinir-se como indivíduo na sua relação com o entorno cultural e social. Quando tudo muda com freqüência, aprender é condição para poder continuar existindo.

Vejo a vida e a arte como constante aprendizado, sou viciado em aprender. Acredito que estamos num período de mudanças radicais, ser capaz de aprender e experimentar vai ser mais importante do que no passado. Provavelmente não é só o sistema financeiro internacional que vai ser reinventado nos próximos anos.

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