Calor extremo exacerba revolta entre povo palestino
Timothy Jones
6 de agosto de 2023
Num verão atipicamente quente, apagões frequentes tornam a vida ainda mais árdua na Faixa de Gaza. Incitados por um "Vírus Gozador", habitantes se reuniram em raro protesto contra os autoritários governantes do Hamas.
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Em 30 de julho, centenas de cidadãos tomaram as ruas da Faixa de Gaza, sobretudo nas cidades de Khan Younis e Rafah, no sul do território, em protesto contra as quedas de energia e outras condições penosas, agravadas pelo calor fora do normal.
Aparentemente as manifestações foram organizadas nas redes sociais por um grupo que se denomina Alvirus Alsakher, "O Vírus Gozador". Até agora desconhecido, ainda não se sabe quem se esconde por trás desse nome. Foram cenas raras de descontentamento público sob o Hamas, os autoritários governantes fundamentalistas islâmicos de Gaza, com um histórico de reprimir todo tipo de protesto ou dissidência.
Desta vez o procedimento não foi diferente: segundo testemunhas, os manifestantes foram rapidamente dispersados pela polícia, que também fez algumas detenções. Indagadas pela DW, as autoridades da Faixa de Gaza se recusaram a comentar.
Assim como muitas outras regiões do Oriente Médio, o pequeno território palestino no litoral do Mar Mediterrâneo está atravessando um verão tórrido. Embora o clima nessa estação seja normalmente quente e úmido, em 2023 as temperaturas se mantiveram elevadas por um período atipicamente longo, tornando a vida em Gaza ainda mais difícil do que o usual.
Entre o bloqueio de Israel e do Egito
O universitário Shady, de Khan Younis, comenta que os apagões estiveram entre as muitas razões por que participou dos protestos: "As faltas de luz recentes fizeram muitos lembrarem que não recebem o nível mínimo de tratamento humano, embora tenham vivido nessa situação por muitos anos."
"A gente tem uma vida difícil e miserável. Não há esperança. Nós queríamos erguer as nossas vozes para que alguém nos ouvisse. Nós somos as vítimas da ocupação [israelense] e da divisão palestina", lamenta o jovem de 24 anos.
Desde que o Hamas assumiu da Autoridade Palestina do controle de Gaza, em 2007, seus habitantes vivem sob um bloqueio estrito, imposto principalmente por Israel e em parte pelo vizinho Egito.
A tomada do poder pelo Hamas – ou "golpe", como classifica o grupo rival Fatah – cimentou o racha político entre a região e a Cisjordânia ocupada. O Hamas culpa Israel de sufocar toda perspectiva de recuperação econômica ou desenvolvimento no território.
Israel afirma que o bloqueio, que restringe o acesso via mar, terra e ar, é necessário para impedir a expansão militar do grupo islamista, que nega o direito à existência do Estado israelense. Israel e o Hamas já se combatem há anos, e a União Europeia e os Estados Unidos classificam os militantes como organização terrorista.
Por sua vez, organizações pelos direitos humanos e residentes de Gaza qualificam como punição coletiva o bloqueio – que Israel ocasionalmente relaxa ou aperta, ao sabor dos acontecimentos políticos.
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Falta de energia como símbolo de uma sociedade em crise
O polítologo Mkhaimer Abu Saada, residente em Gaza, avalia que os protestos tenham sido uma tentativa de chamar a atenção para o território, coincidindo com o encontro no Egito em que diversos partidos políticos palestinos, sobretudo o Hamas e o Fatah, discutiam a unidade nacional. Este último partido domina a Autoridade Palestina e administra partes restritas da Cisjordânia sob ocupação israelense.
"A juventude palestina aqui de Gaza queria erguer sua voz contra as condições do dia a dia, no momento em que os líderes das facções estavam se encontrando no Cairo, para que eles ao menos prestassem atenção às necessidades e às queixas dela", explica o professor da Universidade Al Azhar, no Egito. No fim, contudo, a reunião falhou em sua meta de encontrar meios para superar o profundo cisma político palestino.
A escassez de eletricidade constante é outro tema crucial em meio à onda de calor na região. Os apagões afetam todos os aspectos da vida quotidiana, da conservação da comida ao usos de aparelhos básicos como bombas d'água, ventiladores, computadores ou máquinas de lavar.
"Geralmente nós tínhamos um cronograma de oito horas ligado, oito horas desligado, mas, por causa do calor, a demanda é alta, e grande parte das casas só dispõe de quatro a seis horas de energia, em média", descreve Abu Saada.
Os quase 2,4 milhões de residentes da Faixa de Gaza são obrigados a suportar uma média de 12 horas de falta de luz, nas épocas de grande demanda. Seriam necessários de 450 a 550 megawatts contínuos para suprir as necessidades locais, muito mais do que é fornecido há anos.
Atualmente a única usina elétrica da região produz de 75 a 100 megawatts, dependendo da quantidade de combustivel disponível e do estado de manutenção, cronicamente problemático.
Mas há quem considere a crise elétrica um mero símbolo para a situação globalmente deplorável. Para o cientista político Usama Antar, é cedo demais para determinar se protestos como os de 30 de julho podem representar uma ameaça ao Hamas: "Não houve efeito de mobilização, mas ele demonstrou que o povo está realmente farto."
Observadores frisam que tal sentimento de frustração se dirige tanto contra o Hamas quanto ao Fatah, os quais se mostram ambos incapazes de resolver qualquer crise. O universitário Shady expressa esse sentimento com eloquência.
"Somos uma geração que cresceu sob circunstâncias difíceis, nunca tive um único dia bom. Tenho 24 anos e nunca viajei na minha vida. Queremos viver com dignidade, essa é a nossa meta. Talvez não vamos conseguir isso através de protestos, mas pelo menos a gente levantou a nossa voz."
A longa história do processo de paz no Oriente Médio
Por mais de meio século, disputas entre israelenses e palestinos envolvendo terras, refugiados e locais sagrados permanecem sem solução. Veja um breve histórico sobre o conflito.
Foto: PATRICK BAZ/AFP/Getty Images
1967: Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU
A Resolução 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, aprovada em 22 de novembro de 1967, sugeria a troca de terras pela paz. Desde então, muitas das tentativas de estabelecer a paz na região referiram-se a ela. A determinação foi escrita de acordo com o Capítulo 6 da Carta da ONU, segundo o qual as resoluções são apenas recomendações e não ordens.
Foto: Getty Images/Keystone
1978: Acordos de Camp David
Em 1973, uma coalizão de Estados árabes liderada pelo Egito e pela Síria lutou contra Israel no Yom Kippur ou Guerra de Outubro. O conflito levou a negociações de paz secretas que renderam dois acordos 12 dias depois. Esta foto de 1979 mostra o então presidente egípcio Anwar Sadat, seu homólogo americano Jimmy Carter e o premiê israelense Menachem Begin após assinarem os acordos em Washington.
Foto: picture-alliance/AP Photo/B. Daugherty
1991: Conferência de Madri
Os EUA e a ex-União Soviética organizaram uma conferência na capital espanhola. As discussões envolveram Israel, Jordânia, Líbano, Síria e os palestinos – mas não da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) –, que se reuniam com negociadores israelenses pela primeira vez. Embora a conferência tenha alcançado pouco, ela criou a estrutura para negociações futuras mais produtivas.
Foto: picture-alliance/dpa/J. Hollander
1993: Primeiro Acordo de Oslo
Negociações na Noruega entre Israel e a OLP, o primeiro encontro direto entre as duas partes, resultaram no Acordo de Oslo. Assinado nos EUA em setembro de 1993, ele exigia que as tropas israelenses se retirassem da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e que uma autoridade palestina autônoma e interina fosse estabelecida por um período de transição de cinco anos. Um segundo acordo foi firmado em 1995.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Sachs
2000: Cúpula de Camp David
Com o objetivo de discutir fronteiras, segurança, assentamentos, refugiados e Jerusalém, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, convidou o premiê israelense Ehud Barak e o presidente da OLP Yasser Arafat para a base militar americana em julho de 2000. No entanto, o fracasso em chegar a um consenso em Camp David foi seguido por um novo levante palestino, a Segunda Intifada.
Foto: picture-alliance/AP Photo/R. Edmonds
2002: Iniciativa de Paz Árabe
Após Camp David, seguiram-se encontros em Washington e depois no Cairo e Taba, no Egito – todos sem resultados. Mais tarde, em março de 2002, a Liga Árabe propôs a Iniciativa de Paz Árabe, convocando Israel a se retirar para as fronteiras anteriores a 1967 para que um Estado palestino fosse estabelecido na Cisjordânia e em Gaza. Em troca, os países árabes concordariam em reconhecer Israel.
Foto: Getty Images/C. Kealy
2003: Mapa da Paz
Com o objetivo de desenvolver um roteiro para a paz, EUA, UE, Rússia e ONU trabalharam juntos como o Quarteto do Oriente Médio. O então primeiro-ministro palestino Mahmoud Abbas aceitou o texto, mas seu homólogo israelense Ariel Sharon teve mais reservas. O cronograma previa um acordo final sobre uma solução de dois estados a ser alcançada em 2005. Infelizmente, ele nunca foi implementado.
Foto: Getty Iamges/AFP/J. Aruri
2007: Conferência de Annapolis
Em 2007, o então presidente dos EUA George W. Bush organizou uma conferência em Annapolis, Maryland, para relançar o processo de paz. O premiê israelense Ehud Olmert e o presidente da ANP Mahmoud Abbas participaram de conversas com autoridades do Quarteto e de outros Estados árabes. Ficou acordado que novas negociações seriam realizadas para se chegar a um acordo de paz até o final de 2008.
Foto: picture-alliance/dpa/S. Thew
2010: Washington
Em 2010, o enviado dos EUA para o Oriente Médio, George Mitchell, convenceu o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, a implementar uma moratória de 10 meses para assentamentos em territórios disputados. Mais tarde, Netanyahu e Abbas concordaram em relançar as negociações diretas para resolver todas as questões. Iniciadas em setembro de 2010, as negociações chegaram a um impasse dentro de semanas.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Milner
Ciclo de violência e cessar-fogo
Uma nova rodada de violência estourou dentro e ao redor de Gaza no final de 2012. Um cessar-fogo foi alcançado entre Israel e os que dominavam a Faixa de Gaza, mas quebrado em junho de 2014, quando o sequestro e assassinato de três adolescentes em mais violência. O conflito terminou com um novo cessar-fogo em 26 de agosto de 2014.
Foto: picture-alliance/dpa
2017: Conferência de Paris
A fim de discutir o conflito entre israelenses e palestinos, enviados de mais de 70 países se reuniram em Paris. Netanyahu, porém, viu as negociações como uma armadilha contra seu país. Tampouco representantes israelenses ou palestinos compareceram à cúpula. "Uma solução de dois Estados é a única possível", disse o ministro francês das Relações Exteriores Jean-Marc Ayrault, na abertura do evento.
Foto: Reuters/T. Samson
2017: Deterioração das relações
Apesar de começar otimista, o ano de 2017 trouxe ainda mais estagnação no processo de paz. No verão do hemisfério norte, um ataque contra a polícia israelense no Monte do Templo, um local sagrado para judeus e muçulmanos, gerou confrontos mortais. Em seguida, o plano do então presidente dos EUA, Donald Trump, de transferir a embaixada americana para Jerusalém minou ainda mais os esforços de paz.
Foto: Reuters/A. Awad
2020: Tiro de Trump sai pela culatra
Trump apresentou um plano de paz que paralisava a construção de assentamentos israelenses, mas mantinha o controle de Israel sobre a maioria do que já havia construído ilegalmente. O plano dobrava o território controlado pelos palestinos, mas exigia a aceitação dos assentamentos construídos anteriormente na Cisjordânia como território israelense. Os palestinos rejeitaram a proposta.
Foto: Reuters/M. Salem
2021: Conflito eclode novamente
Planos de despejar quatro famílias palestinas e dar suas casas em Jerusalém Oriental a colonos judeus levaram a uma escalada da violência em maio de 2021. O Hamas disparou foguetes contra Israel, enquanto ataques aéreos militares israelenses destruíram prédios na Faixa de Gaza. A comunidade internacional pediu o fim da violência e que ambos os lados voltem à mesa de negociações.
Foto: Mahmud Hams/AFP
2023: Terrorismo do Hamas e retaliações de Israel
No início da manhã de 7 de outubro, terroristas do grupo radical islâmico Hamas romperam barreiras em alguns pontos da Faixa de Gaza, na fronteira com Israel, e, em território israelense, feriram e mataram centenas de pessoas, além de sequestrarem mais de uma centena. Devido a isso, Israel declarou "estado de guerra" e iniciou uma série de bombardeios, deixando partes da Cidade de Gaza em ruínas.