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"Laranjas" e a falácia da inclusão feminina na política

8 de março de 2017

Para cumprir regra de 30% de candidaturas femininas, partidos registram mulheres que não recebem votos. Já no radar da Justiça Eleitoral, fraude agrava baixíssima representatividade feminina na política brasileira.

Brasilien Demonstrationen im Unterhaus für die Amtsenthebung von Rousseff
Foto: Getty Images/AFP/E. Sa

Nas eleições municipais de 2016, 16.131 candidatos não tiveram nem um voto sequer – nem o próprio. De cada dez dos "sem-votos", nove eram mulheres (14.417 candidatas). Os dados foram obtidos graças à ministra Luciana Lóssio, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que já tinha o "fenômeno" sob seu radar e pediu que a justiça eleitoral fizesse o levantamento. A magistrada não teve dúvida de que se tratava de um novo tipo de fraude eleitoral que agrava ainda mais a já escassa representatividade feminina nesta área: são as "mulheres-laranja" da política.

O diagnóstico ficou evidente no ano passado, mas os sintomas já eram conhecidos do TSE desde 2012, quando chegou à corte uma ação do Piauí. Três mulheres foram incluídas numa chapa de vereadores sem que elas tivessem conhecimento. Só depois da eleição souberam que seus nomes estavam nas urnas. A ação foi movida pelo Ministério Público Eleitoral do Piauí, graças à atuação de um grupo de advogadas mulheres.

O "fenômeno", como diz a ministra, é facílimo de explicar e difícil de coibir: candidatos homens, que dominam a política há séculos, precisam preencher as chapas com pelo menos 30% de candidatas mulheres – a cota estabelecida por lei, desde 2009. A regra começou a vigorar na eleição de 2010 no Brasil. "Ele [o candidato homem] chama a mulher, a filha, a empregada doméstica, a secretária para assinarem ali o pedido de registro de candidatura. E essas pessoas não fazem nada, não fazem campanha, não recebem voto."

Após o resultado da primeira eleição com as regras novas, a cota para mulheres parecia ter sido um acerto num país com representatividade política tão desigual. O número de deputadas estaduais pulou de 123 (11,6%) para 138 (13,3%) em todo o país. Em 2012, também houve acréscimo da representação feminina em câmaras municipais e prefeituras. Porém, em 2014 já era perceptível a queda. "O que os partidos começam a fazer? A pensar em formas de burlar as candidaturas de mulheres. É daí que surge o fenômeno das candidatas-laranja", atesta a ministra.

Lançar candidatas fictícias é fraude e crime, sentencia a ministra. "Quem cometeu essa conduta fraudulenta e foi eleito vai ter seu mandato cassado, vai ser considerado inelegível e pode também ser condenado por falsidade ideológica."

"Quanto mais desenvolvido o país, mais igualitária a representação"

As mulheres brasileiras têm o direito ao voto há 85 anos. No México, as eleitoras só foram às urnas em 1946, mas o país hoje já tem paridade de gênero na política. Na Suíça, surpreendentemente, as mulheres só começaram a votar em 1971 e o país é um modelo de equidade de gênero.

No Brasil, porém, o direito de votar e de ser votada não evoluiu de forma significativa na representatividade política ao longo do século. 

O organismo internacional União Internacional de Parlamentos (IPU, na sigla em inglês) mede a representatividade feminina em 193 democracias. O Brasil ocupa a posição 154 no último ranking divulgado. Para a ministra, uma posição vexatória para uma das 10 maiores economias do mundo, cuja maioria da população é feminina e onde as eleitoras (52,3%) superam o número de eleitores do sexo masculino (47,7%).

"O Brasil está atrás de países que tradicionalmente renegam direitos das mulheres, como Iraque, Arábia Saudita. Esses países têm mais mulheres no parlamento do que nós. Isso é um absurdo", observa Lóssio.

A cota para a representação feminina precisa ser mantida, segundo Luciana Lóssio, a despeito da burla da lei. "Essa medida de ação afirmativa, que é a imposição de uma cota, é absolutamente necessária para nós mulheres", opina a ministra. 

Estudos sobre representatividade feitos pelas Nações Unidas demonstram a evidente relação entre desenvolvimento social e paridade de gênero na política. "Quanto maior o IDH (índice de desenvolvimento humano) de um país, maior a representação feminina. Quanto mais desenvolvido o país, mais igualitária a representação. Isso me parece muito lógico, porque homens e mulheres têm tarefas igualitárias."

Quatro anos sem sentença

O TSE só  julgou o caso do Piauí só no ano passado. O que estava em jogo era saber se naquela situação caberia uma investigação judicial eleitoral. A corte demorou quatro anos para concluir que o caso do Piauí pode e merece ser investigado e se trata de um novo tipo de fraude eleitoral. Agora a ação foi novamente enviada à justiça eleitoral do Piauí e está tramitando. Os homens da chapa, que venceram as eleições, podem se tornar inelegíveis por oito anos.

Luciana Lóssio lamenta a demora da corte, mas explica que essa decisão tem um importante significado e vai agilizar o julgamento futuro de ações ajuizadas após a eleição de 2016 e que devem chegar ao TSE até o final deste ano. "Tenho certeza de que as ações de 2016 tramitarão muito mais rapidamente. Esses processos serão julgados antes do término do mandato (dos responsáveis), até o fim deste ano ou em 2018", afirma.

Luciana Lóssio notou a fraude já nas eleições de 2012Foto: Assessoria Comunicação - TSE/Roberto Jayme

Hoje tramitam ações semelhantes ao caso do Piauí no Rio Grande do Sul, Bahia, Minas Gerais, São Paulo e vários outros estados, segundo Luciana Lóssio. Ela acredita que uma decisão dura do TSE, ainda em 2017, vai intimidar os partidos e os homens da política na eleição de 2018, obrigando-os a procurar candidatas de verdade e interessadas em atuar no Executivo e no Legislativo.

O argumento dos dirigentes partidários de que as mulheres não querem atuar na política parece falacioso diante do alto índice de filiação: em média, 44% dos membros de partidos no Brasil são mulheres.

Retratos

Aos 42 anos, a advogada Luciana Lóssio chegou ao tribunal em 2011, como a primeira respresentante feminina escolhida por juristas, e vai deixar o posto em maio. Desde 1937, a corte eleitoral foi presidida por uma única mulher, Cármen Lúcia (hoje a presidente do Supremo Tribunal Federal), no biênio 2012-2013.

"[A representatividade feminina] é um tema que sempre me foi muito caro. Levantei essa bandeira no tribunal, sem modéstia", afirma a ministra, hoje presidente da Associação Ibero-Americana de Magistrados Eleitorais.

Para que a representação da mulher na política seja efetiva, há passos fundamentais a se seguir. O primeiro é a Justiça Eleitoral ser firme na exigência das cotas, pontua a própria ministra. O segundo é o Ministério Público Eleitoral ter capilaridade para detectar fraudes. Um outro aspecto depende dos partidos políticos, que deveriam incentivar a formação de líderes mulheres e não fechar os olhos para o uso de laranjas. Por fim, há o papel crucial da sociedade civil, de conscientização e cobrança. "Não basta só imposição de cima para baixo, mas de baixo para cima", explica a ministra.

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