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HistóriaBrasil

Carlos Gomes e o embranquecimento de certos homens pardos

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
11 de julho de 2024

Assim como aconteceu com Machado de Assis, e Castro Alves, compositor do século 19 também teve sua negritude apagada, reforçando ideia mentirosa de que só homens brancos tiveram destaque na sociedade brasileira

Antônio Carlos Gomes (1836-1896) Foto: Cola Images/IMAGO

Quem já ouviu rádio no Brasil, provavelmente já se deparou com "A Voz do Brasil”, um noticiário radiofônico da Empresa Brasileira da Comunicação, de transmissão obrigatória de segundas às sextas-feiras.

Esse programa foi criado por Getúlio Vargas em 1935 (e na época era chamado de Programa Nacional), tendo sido renomeado em 1962. Com exceção de um período da ditadura militar, a abertura da Voz do Brasil era um trecho de O Guarani, música do Maestro Carlos Gomes.

Há quem diga que essa relação direta entre o programa e a obra de Carlos Gomes, tenha sido um dos responsáveis pelo apagamento de um dos maiores e mais importantes músicos da nossa história.

Mas essa explicação me parece fácil demais.

Trajetória

Antônio Carlos Gomes nasceu há exatos 188 anos, em 11 de julho de 1836, na cidade Campinas. Ficou órfão de mãe muito cedo, e na sua infância e adolescência dividia seu tempo entre o trabalho na alfaiataria e a Banda Musical de Campinas, que seu pai criou para sustentar a família. Desde cedo mostrou muita facilidade para música: aos 15 anos já compunha valsas e polcas e aos 18 anos compôs sua primeira Missa.

A década de 1860, foi o início da ascensão de Carlos Gomes, que rapidamente ganhou a Corte do Rio de Janeiro e caiu nas graças do Imperador D. Pedro 2°. Sua carreira ganhou dimensão internacional: foi o primeiro compositor brasileiro a ter suas obras apresentadas no Teatro alla Scala, um dos mais renomados da Itália, e passou parte de sua vida trabalhando na Europa.

Não seria exagero dizer que a vida e obra de Carlos Gomes foram bem representativas do período em que ele viveu, e da ideia de Brasil que estava em construção. Não por acaso, uma das suas obras mais importantes se chamava justamente O Guarani (1870), numa alusão direta ao movimento indigenista que marcou o Romantismo brasileiro - movimento artístico e literário vigente na segunda metade do século 19.

Apagamento

A proximidade com D. Pedro 2° fez com que Carlos Gomes fosse visto com desconfiança e permanecesse distante do regime republicano instaurado no Brasil em 1889. Essa foi a possível razão para a recusa do convite que lhe foi feito para compor o novo hino nacional.

Reconhecido em vida e dono de uma carreira musical inédita no Brasil, Carlos Gomes faleceu em Belém em1896. O maestro recebeu uma série de homenagens nos anos subsequentes à sua morte: estátuas e monumentos foram erguidos em sua homenagem, e seu rosto chegou a ser forjado numa moeda de circulação nacional. Infelizmente, parte de sua importância caiu no esquecimento, e apesar de seu nome constar no Livro de Aço dos Heróis e Heroínas da Pátria, ainda falta muito para fazer jus à sua vida e obra.

E talvez, uma das principais razões para esse esquecimento mais recente da figura de Carlos Gomes, se deva ao fato de que ele era um homem negro. Negro de pele clara, é verdade. Mas um homem reconhecidamente negro.

Desse modo, a figura de Carlos Gomes e o esquecimento construído ao redor deles nas últimas décadas estão diretamente ligados com as formas pelas quais a sociedade brasileira, sobretudo as elites do país, mobilizam a categoria dos homens e mulheres pardos ao longo da nossa história.

Processo de embranquecimento

Há um longo e importante debate sobre quem são as pessoas pardas no Brasil. E dada à complexidade do tema, é impossível traçar uma única definição para essa categoria racial. Pardos poderiam ser filhos de negro com branco, de branco com indígena, de negro com indígena e outras possibilidades, fazendo dessa uma categoria um tanto quanto elástica. Em tese, havia uma coisa que os pardos não eram: brancos.

No entanto, num país que apostou na escravidão para o futuro, que fez do racismo científico a plataforma ideológica por mais de 50 anos, era praticamente impossível reconhecer a genialidade desses homens pardos. Por isso, Carlos Gomes passou por um processo de embranquecimento: afinal de contas, como reconhecer que o maior maestro que o Brasil teve até então era um homem negro? (quem conhece minimamente a história da música brasileira, inclusive a chamada música erudita, sabe que não são poucos os exemplos de maestros negros por aqui).

A imagem embranquecida e distanciada o máximo possível da ideia de negritude, foi um processo que outras personalidades brasileiras passaram, como Castro Alves e Machado de Assis. E essa foi uma escolha que não se restringiu à virada do século 19 para o século 20.

Num exercício de anacronismo (esse pecado capital entre historiadores), tenho poucas dúvidas que, numa batida policial, Castro Alves, Machado de Assis e Carlos Gomes seriam parados e abordados com alguma truculência.

Reconhecer a negritude do maestro Carlos Gomes é também reconhecer as artimanhas que foram criadas para embranquecer personagens negras notórias de nossa história, reforçando uma ideia mentirosa de que só homens e mulheres brancos tiveram destaque na sociedade – e aqui, gostaria de fazer uma singela homenagem a outro maestro negro brasileiro, Laercio de Freitas, falecido no último 5 de julho.

E também é um lembrete de que, ainda que precisemos estudar e entender com mais profundidade quem são os pardos (que atualmente compõe o maior percentual populacional do Brasil), o movimento negro acertou em defender que negro é a categoria política que abarca os pretos e pardos da população brasileira, pois apesar das nuances criadas pelo nosso racismo, há mais semelhança do que diferença entre eles, inclusive, e sobretudo, no que diz respeito ao não usufruto completo da cidadania (e toda violência que isso representa).

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.

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