Beckett e a Alemanha
6 de dezembro de 2011Quando Beckett estreou como diretor em Berlim, em 1965, pouco se sabia sobre suas ligações anteriores com a Alemanha. Entretanto, uma série de viagens feitas pelo escritor irlandês para o país, nos anos 1920, exerceu uma tremenda influência na formação dele como artista, como revelam as cartas descobertas após sua morte, que vêm sendo reunidas e publicadas na coleção de quatro volumes intitulada As cartas de Samuel Beckett. Os dois primeiros volumes, contendo cartas escritas entre os anos de 1929 e 1956, deixam claros os efeitos exercidos pela cultura alemã no futuro Prêmio Nobel de Literatura.
O caso de amor de Beckett pela Alemanha começou no fim dos ano 1920, quando o então jovem viajou até Kassel para visitar um tio do lado materno e se apaixonou por sua prima. Embora a família falasse inglês, o linguista talentoso começou a se corresponder com seus parentes num alemão ainda em aprendizado. Mas em 1929, ele já demonstrava a fluência necessária para ler obras de Arthur Schopenhauer – um dos autores que mais o influenciaram – no original.
"Vorazmente curioso"
Sete anos mais tarde, pouco depois dos Jogos Olímpicos realizados em Berlim, Beckett retornou à Alemanha, desta vez para fazer uma grande turnê por galerias e museus. Ele tinha se demitido de um trabalho como professor em Dublin e, na tentativa de escapar tanto da Irlanda quanto da própria mãe, passou seis meses viajando pela Alemanha, vendo obras de arte. Nesse período, escreveu um detalhado diário, com quase 500 páginas de notas sobre as obras de arte que via e também sobre a vida sob o cada vez mais hostil regime nazista.
Leland de la Durantaye, professor de literatura inglesa da Universidade de Harvard, atualmente pesquisador da Academia Norte-Americana em Berlim, afirma que o diário de Beckett, ao lado de suas cartas escritas no período, permitem uma visão acurada sobre a forma como ele pensava a arte. O escritor era "vorazmente curioso", diz De la Durantaye em entrevista à Deutsche Welle.
"E nesses diários – provavelmente porque ele não esperava que seriam algum dia lidos – Beckett mostra-se relativamente desprotegido. Ele se manifesta de maneira fenomenalmente específica a respeito de uma série de coisas, sobre as quais não se manifestou de forma tão clara nem antes nem depois", acrescenta De la Durantaye.
O especialista em literatura destaca uma carta em particular, escrita por Beckett ao editor alemão Axel Kaun, na qual ele revela seus sentimentos em relação a seu contemporâneo James Joyce, bem como seu profundo interesse pela língua alemã.
"Ele gosta dos efeitos estranhos que pode produzir no idioma alemão ao fazer um uso inadequado dele", diz De la Durantaye. "Ele sabe que não pode ter uma medida exata da maneira como está usando inadequadamente o alemão, mas diz esperar que, um dia, seja capaz de fazer um mau uso da própria língua com o mesmo Wissen e o mesmo Willen, ou seja, com o mesmo saber e o mesmo desejo com o qual distorce o alemão", completa o pesquisador.
Testemunha da repressão nazista
A paixão pela língua alemã conferia a Beckett também o privilégio de ter acesso a pinturas e esculturas que haviam sido banidas da observação pública. Devido à sua condição de estrangeiro, ele podia pedir permissão tanto para ver as obras expostas ao público, quanto para observar, em caráter privado, trabalhos que tinham recebido recentemente o rótulo de "degenerados" e sido censurados pelo regime nazista.
Nesta grande turnê pelo país, Beckett encontrou a pintura de Casper David Friedrich (1774-1840) que o inspirou a escrever a premiada peça Esperando Godot. Mais tarde, ao se lembrar do Martírio de São Sebastião, de Antonello da Messina, uma pintura que havia visto em Dresden, Beckett escreveu: "Frente a um trabalho como esse, à tal vitória sobre a realidade da desordem, à mesquinhez do coração e da mente, é difícil não ir embora e se enforcar".
Testemunhar a repressão cultural praticada pelo regime nazista e assistir aos discursos de propaganda ecoados pelo rádio da época fizeram com que Beckett fosse formando sua visão sobre o "Terceiro Reich". Isso foi também o que possivelmente o levou a desempenhar um papel arriscado no movimento de Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial. Diz-se, aponta De la Durantaye, que essas experiências iniciais de Beckt na Alemanha, com o regime nazista, motivaram seu engajamento heróico em duas células de resistência na França durante a guerra.
"Um dos argumentos neste sentido é o de que ele não percebeu, de fato, o quão perigoso era tudo enquanto ele esteve na Alemanha, o que levou a um comprometimento maior de sua parte mais tarde, no sentido de combater o perigo que havia tomado o poder", continua De la Durantaye. "O outro argumento é o de que ele já havia se sensibilizado em relação ao assunto, de forma que se envolveu rápida e intensamente na resistência, tendo deixado a segura e neutra Irlanda em direção à França não somente para ficar próximo de pessoas que lhe eram caras, mas também para participar da resistência", descreve o pesquisador.
O papel de Beckett na resistência, primeiro como pombo-correio, depois como sabotador das Forças Armadas alemãs na França, perpetuou-se durante a Segunda Guerra Mundial. Mesmo assim, ele não permitiu que a guerra maculasse seu apreço pelo país. Durante toda sua vida, o escritor voltou com frequência a Berlim, onde se tornou um amigo próximo de sua tradutora para o alemão, Erika Tophoven, e encenou com frequência suas peças no Teatro Schiller, fazendo crer que seu amor primordial pela Alemanha nunca morreu.
Autora: Courtney Tenz (sv)
Revisão: Alexandre Schossler