Ser brasileiro não é fácil e a gente já viu muito absurdo nessa vida. Mas juro: nunca imaginei ver algo tão baixo como o escândalo do momento.
Falo, claro, da suposta venda por pessoas ligadas intimamente a Jair Bolsonaro, de presentes recebidos de chefes de Estado em lojas dos Estados Unidos para "pegar” o dinheiro para "o chefe” (o ex-presidente).
Estávamos acostumados (infelizmente) com superfaturamento de obras, desvios de recursos públicos e outros horrores e não, eles não são justificáveis. São terríveis. Mas o "saldão” de presentes de chefes de estado, que está sendo investigado pela polícia, teria outros componentes adicionais: a falta de classe, de educação, a baixeza sem limites.
Para quem estava em Marte, um resumo dessa confusão que pode levar o presidente Bolsonaro à prisão.
A Polícia Federal deflagrou em 11 de agosto uma operação para apurar um esquema de vendas de presentes recebidos por Jair Bolsonaro quando ele era presidente da República. A PF vê indícios de que o ex-presidente seria o beneficiário direto das vendas, o que ele nega. De acordo com uma fonte da PF, ouvida pelo programa Fantástico, da TV Globo, no domingo (20/08) , mensagens encontradas no celular de Mauro Cid mostram que Bolsonaro sabia das negociações.
Além de ser contra a lei, convenhamos, tem coisa mais sem educação? Qualquer criança sabe que quando ganha um presente, não pode o colocar para vender na esquina. Também sabemos que não podemos, por exemplo, pegar uma joia que pertencia à nossa avó e ficou de herança para nossa tia e vender. Isso seria roubo.
No caso do esquema de vendas por parte de um ex-presidente e seus assessores, tudo seria bem pior do que um furto familiar. Afinal, nesse caso a venda é de presentes que pertencem ao Estado, que poderiam estar, por exemplo, em um museu.
A troca de presentes entre chefes de estado é um ritual da diplomacia que existe desde os primórdios. Ela simboliza gestos de simpatia, de decoro. Nunca ouvi falar de nenhum governo que tivesse vendido esse tipo de coisa. E para piorar tudo (ou melhorar, pois pelo menos o esquema foi descoberto): os integrantes da máfia da venda de presentes ainda atuavam como "Os Trapalhões” da corrupção.
"Loucademia de Corruptos"
Que espécie de pessoa tira uma foto de um presente que vai vender ilegalmente e não percebe que seu reflexo saiu na foto? Pois o general do exército Mauro Lourena Cid, pai de Mauro Cid, tenente coronel e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, conseguiu esse feito.
Mas as outras vendas também parecem filmes de sátira, num estilo "Loucademia de Corruptos".
Exemplos: um relógio de luxo da marca Rolex, que teria sido vendido nos EUA por Mauro Cid, foi recomprado por um valor mais alto pelo advogado Frederick Wassef, que representa a família Bolsonaro, depois que o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que o item fosse devolvido.
Algumas vendas não deram certo, como um conjunto de joias da Chopard, que foi colocado para venda em um leilão online da empresa Fortuna Actions, de Nova York, mas não foi arrematado.
O kit chegou a ser anunciado pela empresa em seu site, em um vídeo. Ou seja, eles teriam tentado vender de forma aberta, com direito a publicidade. Mais amador, impossível.
Esse kit, para piorar, teria sido levado em um voo oficial, quando Bolsonaro deixou o Brasil rumo à Flórida na antevéspera da posse do atual presidente.
Outro presente também teria sido levado nessa viagem: duas esculturas douradas: uma árvore e um barco. A árvore foi recebida por Jair Bolsonaro em uma viagem ao Bahrein.
Valor
Quando "ganhou" o presente, Bolsonaro até postou uma foto protocolar recebendo a escultura. Mas, de acordo com as investigações da PF, essas peças acabaram nas mãos de Mauro Cesar Lourena Cid, o pai de Mauro Cesar Barbosa Cid, que tentou vendê-las em lojas de compra de ouro nos Estados Unidos. A operação não teve sucesso, já que as peças, ao contrário do que eles imaginavam, não eram de ouro maciço, apenas folheadas.
De acordo com a PF, mensagens trocadas entre os membros do "grupo" teriam mostrado que Bolsonaro, então, não quis mais os presentes, já que eles não teriam "valor nenhum”.
O valor, Jair Bolsonaro, era de um gesto, de uma gentileza entre países. Mas essa trupe parece não saber o que é isso.
Além de desejar muito que tudo seja investigado e que a justiça seja feita, sabe em que eu penso? No constrangimento que vou sentir se (ou quando) essa notícia "ex-presidente tinha esquema de venda de presentes que recebia de chefes de Estado” passar no Tagesschau, uma espécie de Jornal Nacional da Alemanha. Em geral não sinto vergonha de nada que acontece no Brasil. Sempre penso que não foi minha culpa e pronto. Mas até minha autoestima de imigrante que tenta não ter complexo de vira-lata tem limite…
_____________________________
Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.