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Estado de DireitoAlemanha

Caso Sylt mostra que racistas perderam a vergonha

Nina Lemos
Nina Lemos
28 de maio de 2024

Moro na Alemanha há quase dez anos e nunca tinha visto uma cena como essa: jovens cantando sorridentes "Alemanha para alemães e estrangeiros fora" em uma festa e temer que essa moda pegue é algo que não podia imaginar.

Episódio xenófobo ocorreu no bar Pony, em SyltFoto: Carsten Rehder/dpa/picture alliance

O vídeo rodou o mundo todo. Nele, jovens ricos alemães se divertem no terraço de um bar, rindo e celebrando. A cena seria normal se eles não estivessem cantando os seguintes versos: "Alemanha para os alemães, estrangeiros fora!". Entusiasmado, um dos jovens faz o que parece ser um gesto nazista e uma imitação do bigode de Hitler. O vídeo foi gravado esse mês em um bar de luxo de uma famosa ilha que é conhecida por sua clientela rica e VIP: Sylt. A música é uma adaptação de uma canção inofensiva de amor, L'amour toujours, de Gigi D'Agostino.

A cena gerou um grande escândalo na Alemanha, obviamente. A polícia abriu uma investigação criminal e o caso foi lamentando pelo chanceler federal alemão, Olaf Scholz, que classificou o episódio como "inaceitável". Ótimo. Mas isso será suficiente para barrar uma "tendência" xenófoba que cada dia fica mais clara no país? Infelizmente, acho que não.

Depois dos jovens ricos racistas viralizarem na internet, soubemos que, no mesmo fim de semana em que o vídeo foi gravado e também em Sylt, uma mulher negra de 29 anos foi insultada e levou um soco. De acordo com a emissora alemã NDR, a polícia informou ainda que um episódio semelhante ao do bar ocorreu numa outra balada da ilha.

Ou seja, o caso está longe de ser isolado. A versão da música, segundo reportagem da NDR, circula no TikTok pelo menos desde dezembro de 2023 e vários casos de jovens cantando as palavras racistas já foram registrados na Alemanha e na Áustria.

Preconceituosos saindo do armário

Moro na Alemanha há quase dez anos e nunca tinha visto uma cena como essa. Não estou dizendo que não existiam neonazistas, claro que existiam. Mas ver pessoas cantando sorridentes esses slogans em uma festa, aos olhos de todos, é algo que eu realmente não podia imaginar. Será que eu era muito inocente? Pode ser. Mas os xenófobos também não eram tão "saidinhos".

"Os idiotas estão saindo do armário", escreveu o cientista político e ativista alemão Tadzio Müller. Sim, a impressão que dá é que na Alemanha, assim como em muitos outros países, os preconceituosos não estão mais com vergonha de externar suas visões xenófobas, racistas, homofóbicas e misóginas.

"A gente já viu isso antes", comentou um amigo brasileiro que também mora na Alemanha no X (o antigo Twitter), depois que eu compartilhei o vídeo dos racistas na rede social. Ele falava do Brasil a partir de 2017, 2018, quando o bolsonarismo mostrou a sua cara e muita gente passou a falar sem vergonha que sentia saudades da ditadura, a falar mal de gays, por aí vai. Ou seja, os preconceituosos saíram do armário.

Vendo a cena horrorosa de Sylt (assustadora principalmente para nós, estrangeiros que moram na Alemanha) lembrei de alguns episódios que aconteceram no Brasil há poucos anos, como o fato de pessoas falarem que sentiam saudades da ditadura militar e admirarem publicamente torturadores. Esse é o caso do ex-presidente Jair Bolsonaro, que "dedicou" seu voto na noite do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff a Carlos Brilhante Ustra, um dos torturadores mais sanguinários da ditadura. Depois disso, muitos dos seus admiradores, inclusive seu filho Carlos Bolsonaro, usaram sem vergonha camisetas onde estava escrito: "Ustra vive!".

Entoar slogans neonazistas na Alemanha e falar que tem saudade da ditadura são coisas diferentes, mas o ódio e a falta de vergonha de fazer apologia a crimes é muito parecida.

E agora?

Muitos amigos brasileiros perguntam preocupados o que vai acontecer com a Alemanha. Claro que ver essas cenas nos machucam e assustam. Mas uma coisa eu respondo com tranquilidade: apesar do crescimento das manifestações xenófobas, é praticamente impossível que o partido de direita radical Alternativa para a Alemanha (AfD) faça parte do governo federal nos próximos anos. Isso porque o sistema político do país é o parlamentarismo de coalizão, o que significa que partidos devem fazer uma aliança que supere os 50% dos assentos parlamentares para governar. E existe no país o chamado Brandmauer, que significa "muro de contenção", ou seja, um acordo entre os principais partidos para isolar a AfD.

Além disso, o partido está envolvido em vários escândalos. No dia 14 de maio, por exemplo, um de seus maiores líderes, o deputado estadual da Turíngia Björn Höcke, foi condenado por uso de slogan nazista.

Em janeiro, milhares foram às ruas protestar contra o partido e o fascismo depois que uma reportagem mostrou que integrantes da AfD tinham se encontrado com outros extremistas para discutir um plano para expulsar milhares de estrangeiros da Alemanha. As manifestações deixaram ainda mais claro que seria uma péssima ideia (em todos os sentidos, até o eleitoral) um partido se associar à AfD.

Outra coisa que me tranquiliza: novas manifestações contra o fascismo e a xenofobia já estão marcadas em todo o país. Os xenófobos perderam a vergonha, mas ainda existe muita gente sempre pronta para gritar: "alle zusammen gegen den Faschismus" ("todos juntos contra o fascismo").

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000. Desde 2015, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão em Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada.