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ConflitosSudão

Catástrofe humanitária no Sudão é lucro para Rússia e outros

6 de junho de 2024

Organizações internacionais alertam contra fome, genocídio e êxodos no país africano em guerra civil. Associação de protagonistas do conflito com atores internacionais como Irã e Arábia Saudita ainda agrava a situação.

Mulheres e crianças coletam água em área enlameada
Escassez de meios em El Fasher, última peça que falta para Rapid Support Forces conquistarem estado de Darfur do NorteFoto: ASHRAF SHAZLY/AFP

"O tempo está se esgotando para milhões de seres humanos do Sudão": com essas palavras drásticas, a Organização das Nações Unidas e ONGs humanitárias estão alertando para a catástrofe de fome no país do nordeste africano. Na guerra civil que afeta o país há mais de um ano, ambos os adversários têm impedido, em parte intencionalmente, que ajuda humanitária chegue à população, de acordo com uma declaração conjunta.

Antes, num comunicado ao Conselho de Segurança da ONU, a delegada da ONU para Prevenção de Genocídio, Alice Nderitu, chamara a atenção para a violência na região de Darfur, que a seu ver já toma a dimensão de um extermínio em massa: "Civis são atacados por causa de sua cor de pele, de sua etnia."

O relato da responsável por urgências da Médicos Sem Fronteiras (MSF) Claire Nicolet vai na mesma linha: "Estamos vendo um banho de sangue se desenrolar diante dos nossos olhos." Desde 10 de maio, houve pelo menos 145 assassinatos, a violência quase impossibilita a ação humanitária, afirma a ONG.

A situação em El Fasher, capital do estado de Darfur do Norte, é considerada especialmente crítica: mais de 1 milhão de habitantes já fugiram para escapar da guerra. Sob controle das Forças Armadas Sudanesas (SAF), comandadas por Abdel Fattah al-Burhan, ao mesmo tempo a cidade está sitiada pelas rivais Rapid Support Forces (RSF), do líder Mohamed Hamdan Daglo (aliás Hemeti), e sob ofensivas constantes.

"Em El Fasher, a fome em massa é iminente", adverte Marina Peter, presidente da associação alemã Fórum para o Sudão e Sudão do Sul. Caso as milícias a tomem, o resultado deverá ser mais um êxodo gigantesco e, como já se vê em outras localidades ocupadas pelas RSF, uma enorme alta dos preços dos alimentos. "Quem tem algum dinheiro vai poder deixar a cidade, com um pouco de sorte. Mas os pobres vão ser simplesmente massacrados."

Rapid Support Forces do Sudão desfilam em maio de 2017Foto: Mohamed Babiker/Photoshot/picture alliance

Alianças frágeis

Peter supõe que a brutalidade com que procedem as RSF visa convencer os habitantes a se unirem a suas fileiras: "No fim das contas, El Fasher é apenas a peça que falta. Se eles conseguirem isso, o Sudão se dividirá em duas partes, o que seria uma catástrofe política."

A brutalidade possivelmente também se deve à pressão de tempo sob que se encontram os dois protagonistas do conflito, pois quanto mais dura a guerra, mais se esfacelam as alianças.

Segundo uma análise do International Crisis Group (ICG), as SAF e as RSF apostaram em alianças com milícias locais, o que torna difícil coordenar as diversas coalizões. "O conflito entrou numa fase nova e perigosa, em que o Sudão se fragmenta cada vez mais", avisa o grupo de prevenção de crises.

Para compensar, os dois antagonistas igualmente apostam em alianças com parceiros internacionais. No fim de 2023, por exemplo, o líder militar Burhan lançou uma iniciativa diplomática em direção ao Irã. Desde então, as SAF dispõem também de drones de combate, aumentando consideravelmente sua vantagem.

Também o Egito e a Arábia Saudita apoiam abertamente as forças militares regulares sudanesas. Apesar da gravidade da situação, Burhan segue se encenando como homem forte do país, e tanto Cairo quanto Riad "bem gostariam de vê-lo à frente de um Estado governado com mão de ferro", avalia Marina Peter.

A cientista política Hager Ali, do Instituto Alemão de Estudos Globais e Regionais (Giga), lembra que o Egito e o Sudão também estão ligados por laços políticos e ideológicos: a política de Burhan e o conservadorismo do governo egípcio se assemelham.

Destruição em Omduman, no centro do SudãoFoto: ohamed Khidir/Xinhua/picture alliance

Interesse numa "instabilidade controlada"

O fato de o Cairo também se recusar a colaborar com as rivais RSF por elas não serem uma protagonista estatal, é mais um motivo para o líder Hemeti se apresentar como inimigo do fundamentalismo islâmico. E nesse papel é capaz de conseguir o respaldo dos Emirados Árabes Unidos.

Também a Rússia está do lado das RSF, pelo menos indiretamente: Moscou planeja um centro logístico em Porto Sudão, a ser ampliado em base marítima no longo prazo. Em contrapartida, Hemeti entregou ao russo Grupo Wagner – cujo contingente no continente foi rebatizado "Africa Corps" – o direito de extração das enormes jazidas de ouro do Sudão.

"Tanto os Emirados Árabes quanto a Rússia querem expandir sua influência na África, em geral", confirma Hager Ali. Além do interesse comum nas jazidas de ouro, o Sudão é importante para ambos se firmarem ainda mais no continente, e "isso ocorre, de preferência, através da cooperação com agentes não estatais como Hemeti, que escapam ao controle do Estado".

No total, os atores internacionais têm pouco interesse numa solução do conflito: "Para todos os envolvidos, o Sudão é a porta para o Mar Vermelho e, através deste, pela África adentro", explica Ali. Portanto lhes vem a calhar a quase ausência de instituições que funcionem normalmente no país: isso abrevia os prazos de espera, quando a intenção é estabelecer uma base militar ou uma representação diplomática.

"Tudo transcorre muito mais rápido por caminhos inoficiais, pouco transparentes, como são atualmente os do Sudão. Nesse aspecto, os protagonistas têm menos interesse na paz do que numa instabilidade controlada, no longo prazo", resume a especialista do Giga.

 

Kersten Knipp Jornalista especializado em assuntos políticos, com foco em Oriente Médio.