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PolíticaTurquia

Centenário da república turca vira culto a Erdogan

Elmas Topcu
29 de outubro de 2023

Turquia comemora cem anos da sua república. Eventos celebram o presidente e um país islâmico, enquanto reduzem o papel do fundador Atatürk – que planejou um Estado multiétnico e separado da religião.

Foto de Mustafa Kemal Atatürk pendurada em uma parede na Turquia
Para muitos, Mustafa Kemal Atatürk, fundador da república turca, ainda é visto como um herói e exemploFoto: Samir Huseinovic/DW

Haverá uma grande comemoração pública ou não? Os turcos, especialmente os seculares, passaram semanas tentando adivinhar como o governo islâmico-conservador do presidente Recep Tayyip Erdogan comemoraria o centésimo aniversário da fundação da república turca, neste domingo (29/10).

Até poucos dias atrás, não havia sequer um programa oficial na agenda, e diplomatas estrangeiros se perguntavam se alguém havia recebido um convite. Apenas na última sexta-feira o departamento de comunicação de Erdogan anunciou que haveria uma série de eventos – nos quais a era Erdogan será enfatizada.

Os turcos seculares viram seus temores confirmados: Erdogan está tentando apagar o legado do líder fundador da república turca, Atatürk, para tomar o seu lugar, com o objetivo de criar um culto a Erdogan e fortalecer a ideia de um país islâmico.

Erdogan quer tomar o lugar de Atatürk

O "século turco" foi o slogan de campanha de Erdogan, com o qual ele foi reeleito em maio e garantiu o poder por mais cinco anos. Ele está no governo há mais de 20 anos, e agora quer entrar para a história como o estadista que conduziu a república ao seu segundo século.

Beate Apelt, chefe do escritório da Turquia da Fundação Friedrich Naumann, ligada ao Partido Liberal Democrático alemão, vê muito simbolismo na preparação para a celebração do centenário que coloca Erdogan no mesmo nível de importância que Atatürk.

Além da expressão "século turco", há retratos dos dois líderes do mesmo tamanho, lado a lado. Isso sugere que Atatürk é o iniciador, enquanto Erdogan é o finalizador de um grande projeto de cem anos, diz Apelt.

Ela observa uma insatisfação crescente entre muitos turcos pelo fato de o centenário não ser comemorado com pompa. Além disso, diz, muitos eventos festivos estão associados a elementos religiosos. Na opinião de Apelt, isso "certamente também não faz parte do espírito de Atatürk".

Dois grandes estadistas? Atatürk (à esquerda) e Erdogan (à direita) em um cartaz numa cerimônia da Marinha em Istambul Foto: Arif Hudaverdi Yaman/AA/picture alliance

O líder fundador Mustafa Kemal Atatürk introduziu uma clara separação entre Estado e religião. Com o princípio do secularismo, ele também aboliu as irmandades religiosas e o califado, razão pela qual os islamitas ainda hoje têm rancor dele.

Erdogan, por outro lado, tem apoiado esses grupos religiosos desde que chegou ao poder, concedendo-lhes privilégios. Ele nunca fala o nome completo do fundador, Mustafa Kemal Atatürk. Para ele, é sempre "Veterano Mustafa Kemal". Afinal de contas, "Atatürk" significa "antepassado dos turcos". "Ele parece não aceitar isso", é a crítica generalizada. A vida privada liberal de Atatürk, seus relacionamentos com várias mulheres e seu consumo de álcool também são desprezados nos círculos do partido de Erdogan, o AKP.

Seria a Turquia de Atatürk o pesadelo de Erdogan?

Atatürk sonhava com uma república ocidental, moderna e secular. Em poucos anos, ele determinou muitas reformas. Trocou o alfabeto árabe pelo latino, adotou normas inspiradas no Ocidente e introduziu o sufrágio feminino. Até mesmo uma lei sobre chapéus foi criada para garantir que as pessoas deixassem para trás os chapéus religiosos otomanos, como o fez ou o turbante, e se vestissem como em Londres, Berlim e Paris.

Outra meta de longo prazo era forjar uma nação turca a partir das ruínas do Império Otomano multiétnico, o que se concretizou de forma limitada. Ainda há grandes disputas com algumas de suas minorias, como os armênios, alevitas e curdos. Somente o conflito armado com o Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), que é considerado ilegal, já deixou quase 40 mil mortos desde 1984.

Fim do sonho de uma nação multiétnica? Há décadas, curdos na Turquia vêm lutando por autodeterminaçãoFoto: Ozkan Bilgin/AA/picture alliance

Hoje em dia, essas reformas costumam ser associadas ao nome de Atatürk. Mas, na época, elas eram secundárias, diz Salim Cevik, especialista em Turquia da Fundação de Ciência e Política (SWP), em Berlim. Na época – após a derrota na Primeira Guerra Mundial, a desintegração do Império Otomano e a árdua guerra de libertação contra as potências vitoriosas – Atatürk e seus seguidores teriam apenas um objetivo: salvar a entidade estatal remanescente da ruína completa e fundar uma república forte que resistiria a qualquer ataque de dentro e de fora.

"Em sua maior parte, eles foram bem-sucedidos", diz Cevik. Nos últimos cem anos, afirma, o Estado turco transformou-se em uma forte potência regional cuja existência não é questionada ou ameaçada externamente. Por meio de sua participação na Otan e em outras alianças, o país agora é um firme integrante do sistema político internacional.

Um grande país entre a Europa e o Oriente Médio

"A Turquia é um ator importante, especialmente no espaço entre a Europa e o Oriente Médio", enfatiza Apelt. Isso se deve à sua posição geoestratégica como um país da Otan entre o Mar Negro e o Mediterrâneo, com controle sobre os estreitos de Bósforo e Dardanelos. Igualmente relevante é a sua localização central, entre a União Europeia (UE), a Rússia, rival do Mar Negro, e vizinhos problemáticos a sudeste, com fronteiras com a Síria, o Iraque e o Irã.

Erdogan fez uso inteligente dessa condição nos últimos anos. Ele se oferece como um intermediário entre partes em conflito na região, diz Apelt, por exemplo, entre a Ucrânia e a Rússia ou, atualmente, entre Israel e o Hamas. Em sua opinião, Erdogan pode desempenhar um papel construtivo, como no caso do acordo para exportação de grãos da Ucrânia.

Ao mesmo tempo, Erdogan tenta obter o máximo de benefícios para si e para a Turquia em todas as oportunidades. O exemplo mais recente, diz Apelt, foi o bloqueio  turco por meses à adesão da Suécia à Otan . Erdogan havia condicionado isso à retomada das negociações de adesão da Turquia à UE e a medidas para lidar com militantes curdos na Suécia.

Manifestação contra violência contra as mulheres em Ancara. Há dois anos, Erdogan retirou a Turquia de uma convenção do Conselho da Europa sobre proteção das mulheresFoto: Adem Altan/AFP/Getty Images

Apelt também considera que o país desempenha um papel importante sobre a migração irregular para a Europa – apesar do controverso acordo de refugiados de 2016 entre a Turquia e a UE, segundo o qual os refugiados na Turquia deveriam ser impedidos de viajar para o bloco europeu.

Esse tema deve se tornar mais complexo, diz Apelt. A aceitação de refugiados da Síria e de outros países na Turquia diminuiu significativamente durante as crises econômicas nos últimos anos, e a discriminação e o ódio contra eles estão aumentando rapidamente.

Política pacifista?

Após a fundação da república, há cem anos, Atatürk iniciou uma política externa pacífica. De acordo com o cientista político Cevik, seu objetivo era proteger a ainda jovem república de crises internacionais. A Turquia permaneceu fiel a essa trajetória, com exceção do conflito sobre a ilha mediterrânea greco-turca de Chipre, em meados da década de 1970.

Erdogan também evitou conflitos na política externa durante seus primeiros anos no governo. Somente durante os movimentos revolucionários da chamada Primavera Árabe ele aceitou confrontar o mundo árabe e ficou do lado dos insurgentes. Mas, mesmo assim, sua política externa foi pacífica.

No entanto, há alguns anos, um tom agressivo tem prevalecido, e a militarização tem aumentado. O motivo é que o soft power de Ancara tem perdido peso, de modo que Erdogan vê a força militar como o único meio para aumentar sua influência.

Os ataques aéreos turcos no norte do Iraque e no norte da Síria foram alvo de críticas internacionais, e o armamento de grupos jihadistas na Síria e o envio de mercenários para a Líbia e Nagorno-Karabakh também provocaram descontentamento no Ocidente.