Tiergarten abriga a pedra Kueka, reivindicada pelos indígenas venezuelanos, que argumentam que ela foi retirada de um parque nacional sem autorização da comunidade.
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Foi num encontro com lideranças locais, em Santa Elena de Uairén, cidade venezuelana que faz fronteira com o Brasil, que ouvi pela primeira vez a história da Kueka. Eu estava com colegas alemães participando de uma excursão da faculdade. A representante de um conselho da comunidade cobrava vividamente de nós a repatriação da pedra sagrada.
Nós, atônitos, ouvíamos calados a história e tentávamos entender o conflito que estava sendo relatado e a própria situação em que nos encontrávamos. "Depois que a Kueka foi levada diversos desastres naturais aconteceram na região", destacava energicamente a representante. Durante o discurso fomos percebendo o quão delicado e presente era o episódio naquela região longe de tudo, mas ligada à Berlim, a cidade onde morávamos.
A pedra sagrada, que estava no Parque Nacional Canaima, localizado na fronteira do país com o Brasil e a Guiana, era um importante elemento cultural da comunidade indígena pemón. Diz a lenda que dois jovens indígenas de comunidades diferentes, apaixonados, fugiram para se casar, desrespeitando as regras estabelecidas pelo deus máximo. O desafio irritou profundamente o deus, que, como punição, transformou o casal em pedra para passarem a eternidade lado a lado. Para os pemóns, as pedras sagradas seriam os avós da comunidade.
Mais precisamente: a Kueka era a avó. A remoção da pedra foi uma violência contra os pemóns, afirmava a representante venezuelana. Enquanto ela contava a história, os presentes, um pouco envergonhados de estarem ouvindo pela primeira vez a história de um conflito que envolvia a sua cidade, indagavam onde em Berlim estaria a tal pedra sagrada e como a Kueka, de 35 toneladas, teria ido parar na capital alemã.
No fim do encontro, alguém disse achar que a Kueka era parte de uma exposição permanente com pedras do mundo no Tiergarten. Lembrei-me da tal exposição, mas eu nunca tinha reparado atentamente naquelas pedras expostas em círculo num gramado no meio do parque que começa atrás do Portão de Brandemburgo.
O projeto Global Stones, criado por um artista alemão, deveria promover a paz mundial. Cada pedra representa um continente e um sentimento. Trazida para Berlim em 1998, a Kueka simbolizaria a América e o amor.
Segundo o criador do projeto, o próprio governo venezuelano da época teria o presenteado com a pedra. Ele alega que não sabia do valor dela para a comunidade indígena e até mesmo contesta essa importância, argumentando que governo e ativistas criaram, anos depois, o mito da Kueka para manipular os pemóns. Como prova, o artista apresentou um parecer de um especialista em cultura pemón.
Por outro lado, os pemóns afirmam que jamais foram consultados sobre a remoção da pedra e que chegaram, em vão, a tentar impedir o transporte da Kueka. Além disso, a pedra estava dentro de um parque que foi tombado pela Unesco como patrimônio da humanidade, o que de qualquer maneira proibiria a sua remoção.
Em 2012, o conflito atingiu o auge e ganhou os jornais. Vários protestos foram realizados em frente à embaixada da Alemanha em Caracas para exigir a devolução da Kueka. O artista se mostrou disposto a devolver a rocha, mas, em troca, exigia uma nova pedra para a exposição. Outro empecilho: quem iria pagar pelo transporte das pedras. Nem Venezuela nem Alemanha e nem o autor do projeto estavam dispostos a assumir os custos.
Hoje, quase 20 anos depois de sua remoção do parque venezuelano, a Kueka continua separada do seu amado, e isso apesar da punição dos céus que os uniu para a eternidade. Em Berlim, a avó é admirada por turistas – mas nem tanto quanto o conjunto de pedras que simbolizam o perdão –, serve de banheiro para cachorros que brincam no gramado e também para rituais de passagem no solstício de verão, além de ter se tornado um espaço de expressão para aqueles que, como os cães, têm a necessidade de marcar território com sua assinatura por onde passam.
Clarissa Neher é jornalista freelancer na DW Brasil e mora desde 2008 na capital alemã. Na coluna Checkpoint Berlim, publicada às segundas-feiras, escreve sobre a cidade que já não é mais tão pobre, mas continua sexy.
Dez músicas dedicadas a Berlim
De David Bowie a Bloc Party, passando por Ramones e Rufus Wainwright: todos eles se encataram pela capital alemã. E todos declararam seu amor pela cidade fazendo o que sabem fazer melhor.
Foto: picture-alliance/dpa
Marlene Dietrich: "Ich hab noch einen Koffer in Berlin"
A relação entre Marlene Dietrich e sua cidade natal era conturbada. A ascensão do nazismo levou a estrela a um exílio eterno – mas seu anseio conflituoso por Berlim nunca cessou. E acabou capturado, de forma comovente, em "Ich hab noch einen Koffer in Berlin" (Eu ainda tenho uma mala em Berlim). Ela só voltou à terra natal em 1992, para ser enterrada ao lado da mãe.
Foto: picture-alliance/dpa
Iggy Pop: "The Passenger"
"The Passenger" fala sobre como é ver o mundo passando da janela de um metrô de Berlim e se tornou um hino da contracultura. Gravado no legendário Hansa Studios, próximo ao Muro, enquanto Iggy Pop estava no exílio autoimposto na cidade dividida, a música do álbum "Lust for Life" (1977) impulsionou o ex-vocalista dos Stooges ao sucesso comercial.
Foto: picture-alliance/dpa
David Bowie: "Where are we now"
Na sequência de especulações sobre sua saúde, Bowie levou frenezi ao mundo da música com o single "Where are we now?" Ele gravou a maior parte da "Berlin Trilogy" na cidade, nos anos 1970 – incluindo a obra-prima "Heroes". Mas "Where are we now?" revisita a cidade como um senhor idoso. Um passeio nostálgico pela Berlin que ele chamou de casa: "A man lost in time near KaDeWe".
Foto: imago/LFI
Lou Reed: "Berlin"
Diferentemente de Bowie e Iggy Pop, Lou Reed nunca morou em Berlim. Mas isso não o impediu de inspirar-se na cidade para seu álbum no estilo Kurt Weill chamado "Berlin", de 1973. A letra da faixaque leva o mesmo nome do disco evocou perfeitamente o espírito da época de uma geração: "In Berlin, by the Wall / You were five feet, ten inches tall / It was very nice / candlelight and Dubonnet on ice".
Foto: Getty Images/Afp/Stringer
Leonard Cohen: "First we take Manhattan"
Como judeu, Cohen sempre teve problemas com Berlim. Mas, como compositor, ele se sentiu atraído pela história explosiva da cidade no século 20. Em seu clássico cult "First we take Manhattan", de 1987, o canadense faz referências diretas à cidade e canta: "First we take Manhattan…then we take Berlin". A poderosa crítica à hegemonia global estimulou inúmeras versões cover.
Foto: F. Coffrini/AFP/Getty Images
U2: "Zoo station"
Em 1991, o U2 procurava um recomeço após "Rattle and Hum", que dividiu a crítica. E Bono procurou uma nova inspiração em Berlim. Ao fugir para o Hansa Studios, compôs uma música que definiria uma nova e ousada época: "Zoo station". Batizada em homenagem à estação de trem, a banda usou a metáfora para uma Berlim reunida e a nova ordem mundial, intitulando o álbum de "Zooropa".
Foto: picture-alliance/AP Photo/J. Hayward/The Canadian Press
Bloc Party: "Kreuzberg"
No início deste século, Berlim tornou-se santuário para os que buscavam se achar, atraídos por este lugar entre o velho e o novo século. Os integrantes da banda britânica de rock alternativo Bloc Party estava entre eles e tentavam dar um novo sentido às suas vidas. O single "Kreuzberg", de 2007, alfinetou: "There is a wall that runs right through me / Just like this city, I will never be joined".
Foto: picture-alliance/Jazzarchiv
Rufus Wainwright: "Tiergarten"
Enquanto a maioria é atraída a Berlim por causa da história mais recente da cidade, Rufus Wainwright foi buscar inspiração no cabaré e na decadência dos anos 1920, na República de Weimar. "Tiergarten" provou ser uma de suas baladas mais duradoras. Muitos perderam o fôlego com o refrão: "Won't you walk me through the Tiergarten / Doesn't matter if it's raining / Won't you walk me through it all".
Foto: picture-alliance/AP Photo
Black Rebel Motorcycle Club: "Berlin"
O que você faz quando está em uma das bandas mais descoladas do mundo? Você escreve, claro, uma música para uma das cidades mais descoladas do planeta. Segunda faixa do álbum "Baby 81", de 2007, "Berlin" não faz nenhuma referência particular à capital alemã, ainda que o som da progressão de acordes da guitarra seja inconfundível como Berlim: petulante, provocativa e sexy.
Foto: picture-alliance/Geisler-Fotopress
The Ramones: "Born to die in Berlin"
Desde o primeiro "hey ho, let's go", a banda Ramones não escondeu sua fascinação por todas as coisas teutônicas – e, de forma provocativa, deu o nome "Blitzkrieg Bop" ao seu single de estreia, de 1976. Dee Dee Ramone, principal compositor da banda, é filho de uma alemã e cresceu em Berlim. E seu amor pela capital (e as drogas) ficariam para sempre na história com "Born to die in Berlin", de 1995.