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'Arquivos do coração'

Soraia Vilela28 de dezembro de 2008

Artista francês registra batimentos cardíacos na capital alemã. Projeto que evoca relevância da memória coletiva já passou por Paris e Estocolmo e deverá terminar em 2010 numa ilha do Japão.

Boltanski: 'Meu coração vai sobreviver à minha pessoa'Foto: picture-alliance / dpa

A idéia do atual projeto de Christian Boltanski surgiu após um encontro entre o artista, o galerista Michael Kewenig, de Colônia, e Piero de Vitis, proprietário italiano de um restaurante em Berlim. A idéia era iniciar uma série de exposições tanto fora do espaço institucionalizado do museu, quanto distante de qualquer lugar marcado pelo mercado de artes. Um espaço em que o experimentar não estivesse primariamente comprometido.

O próprio Boltanski foi logo o primeiro da série, intitulada In Situ, e o local escolhido foi o restaurante Sale e Tabacchi, de propriedade do italiano De Vitis. A obra, ou melhor, o projeto de Boltanski tomado para a nova série é Les archives du cœur (Os arquivos do coração), no qual o artista grava, com a ajuda de um estetoscópio e de um notebook, os batimentos cardíacos daqueles interessados em participar.

Espelho da limitação

"Os batimentos cardíacos simbolizam a nossa impaciência e a nossa fragilidade, sendo ao mesmo tempo nosso auto-retrato e espelho de nossa limitação. Ele são, para mim, uma matéria artística universal", declara Boltanski. Para o artista, o que importa é evitar o esquecimento, fazendo com que o som produzido por seu próprio coração e pelos de milhares de pessoas de vários países que participam do projeto se perpetuem para além do período de vida das mesmas.

Desde os anos de 1960, Boltanski trata de questões relacionadas à memória, fazendo do arquivar um de seus principais métodos. Os batimentos cardíacos são aqui – da mesma forma como a contundente acumulação desproporcional das roupas de Canada (1988), que remetem às vítimas do Holocausto, ou as identidades anônimas de Le suisses morts (Os suíços mortos) – mais uma tentativa de evitar o esquecimento.

Se antes o artista já reuniu fotografias a fim de registrar destinos individuais, em Os arquivos do coração são os batimentos cardíacos o sinal personalizado que deve contar algo a respeito daquela existência.

Caixa preta

Qualquer um que esteja por acaso visitando o restaurante berlinense entre as 15hs e as 18hs dos dias úteis até o fim deste ano pode "oferecer seus batimentos cardíacos" ao artista para serem arquivados posteriormente. Basta se aproximar de uma pequena caixa preta posicionada num canto do restaurante e acionar o(a) assistente – geralmente um(a) estudante – de plantão.

As primeiras gravações foram feitas pelo artista na Maison Rouge, em Paris. O projeto teve continuidade em Estocolmo e, depois de Berlim, ainda deverá contar com várias estações (a próxima será Nova York) até ser concluído e armazenado na pequena ilha de Ejima, no Japão. O desfecho é considerado de suma importância para Boltanski: levar os batimentos cardíacos coletados em várias cidades do mundo para um local de difícil acesso, distante de Paris, onde ele vive e trabalha.

Ilha distante

A ilha de Ejima, que vai abrigar o projeto, faz parte do complexo de artes criado pelo japonês Soichiro Fukutake, proprietário da Benesse Corporation, o maior parque gráfico japonês, e fundador do Museu de Arte Chichu, cujo projeto arquitetônico é assinado por Tadao Ando e onde estão expostas obras de artistas como Claude Monet, James Turrell ou Walter de Maria.

Para chegar ao lugar onde ficarão guardados os batimentos cardíacos coletados por Boltanski, será preciso se deslocar até a ilha principal de Hishima, para a partir dali chegar a Ejima. Segundo o artista, a instalação deverá se completar a partir de 2010. Até lá, ele continuará "arquivando corações".

Arquivar para não esquecer

"Trata-se da contradição entre significância e fragilidade. Ouvir o próprio coração é uma forma de saber o que realmente somos", filosofa o artista em entrevista è emissora de rádio Deutschlandfunk. No fundo, Boltanski repete neste projeto o que vem fazendo no decorrer de sua sólida trajetória como artista desde os anos de 1960: a criação de pequenos monumentos às pequenas existências.

O artista se preocupa com rastros de pessoas desconhecidas (sejam documentos, roupas, fotos ou agora batimentos cardíacos), a fim de arrancá-las do anonimato das estatísticas e lhes devolver uma individualidade digna. Um dos cernes de sua obra é não ver na multidão uma massa, mas sim uma confluência de indivíduos.

Neste sentido, os "arquivos do coração" recolhidos em Berlim servem para dar continuidade à tradição boltanskiana: arquivar, a fim de não esquecer. Mesmo que, à primeira vista, cada um acredite que seu próprio coração não seja digno de registro, o artista aposta na memória.

E, acima de tudo, na relevância desta memória – individual e coletiva – para as próximas gerações: "Os corações que gravo agora ainda vão continuar batendo quando seus donos – e eu mesmo, o artista – já não estivermos mais aí. Meu coração vai sobreviver à minha pessoa", observou Boltanski no diário berlinense taz.

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