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Cientistas denunciam censura prévia em estudos do ICMBio

23 de março de 2021

A partir de abril, estudos do instituto ambiental só poderão ser divulgados após aval de um tenente-coronel da PM que ocupa diretoria. Pesquisadores apontam que medida prejudica pesquisa e conservação do meio ambiente.

Vista aérea de uma área florestal na Amazônia brasileira, com um rio cortando no meio
O ICMBio é responsável por gerir e proteger unidades de conservação, mas também funciona como um importante centro de pesquisasFoto: AFP/F. Goisnard

O governo federal regulamentou uma norma para a divulgação de pesquisas feitas no âmbito do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A portaria, publicada no Diário Oficial da União no dia 12 de março, delega ao diretor de pesquisa a competência de autorizar previamente a publicação de textos produzidos no âmbito do instituto. O cargo é ocupado por Marcos Aurélio Venâncio, tenente-coronel da reserva da Polícia Militar do estado de São Paulo. A medida vai passar a vigorar em 1º de abril.

A regra já aparecia em um Código de Ética do instituto elaborado em 2020, mas somente agora foi regulamentada. 

Além de implantar, gerir, fiscalizar e monitorar unidades de conservação federais, o ICMBio é responsável por fomentar e executar programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade. Com 14 centros de pesquisas, o ICMBio produz uma série de estudos, muitos em parceria com outras universidades, inclusive do exterior. Agora, mesmo estes teriam que passar pelo aval do diretor. 

Para cientistas independentes e também para pesquisadores e funcionários do ICMBio e do Ministério do Meio Ambiente (MMA) ouvidos pela DW Brasil, trata-se de censura prévia, além de representar um entrave a parcerias com outros centros de pesquisa no Brasil e no mundo. Tanto servidores do instituto quanto do MMA falaram sob condição de anonimato. 

"A repercussão interna [por conta da portaria] foi de muito medo. É uma evidência de controle e de censura", disse uma pesquisadora do ICMBio. "Há muito receio também em relação a como os parceiros nos verão, porque muito do que o ICMBio constrói é junto com uma enormidade de parceiros. Quando a gente faz a avaliação de quão ameaçadas estão as espécies, por exemplo, tudo isso é feito com centenas de instituições."

A DW Brasil fez uma série de questionamentos ao MMA, que os remeteu ao ICMBio. Em resposta, o instituto enviou uma lacônica nota: "Não há censura. Qualquer publicação que se pretenda fazer em nome do órgão continuará sendo previamente analisada, porém, agora, de forma delegada ao diretor da área e não mais pelo presidente do órgão." Atualmente, o instituto é presidido por Fernando Cesar Lorencini, um coronel da Polícia Militar de São Paulo.

Ofensiva

Até então, publicações que saíssem com o selo do instituto já precisavam de autorização. Mas a portaria é mais abrangente. "Uma publicação do ICMBio, do ministério, que sai com a logomarca do ministério, isso é uma coisa; outra coisa é o que saiu agora na portaria, porque isso significa que eu, como pesquisadora, se tiver que fazer um artigo eu vou ter que submeter ao diretor, mesmo já tendo passado por uma avaliação de pares. Então, claramente, é uma censura", avalia uma servidora do MMA. "Fora isso, o que pode acontecer é que os pesquisadores vão acabar desistindo de ter publicações com pesquisadores do ICMBio."

Há uma preocupação também, por parte dos pesquisadores, com a falta de detalhamento da portaria. Em um áudio de Whatsapp trocado entre pesquisadores do instituto a que a reportagem teve acesso, um servidor fala: "Vamos submeter os pedidos de autorização da publicação de nossas pesquisas e ficaremos esperando resposta ad infinitum. A portaria não traz prazo, não determina nada, não regulamenta."

Mercedes Bustamante, professora do departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Coalizão Ciência e Sociedade, explica que já há uma série de mecanismos e avaliações para que pesquisas sejam divulgadas, e que não teria sentido impor essa normativa. "Por que colocar mais uma etapa com uma pessoa que neste momento não tem posição técnica para poder avaliar isso?", questiona. "Ficou muito obscuro o quadro, levanta essa preocupação que seria mais um passo de cerceamento das atividades desses órgãos."

De acordo com o biólogo Filipe França, pesquisador da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, e da Rede Amazônia Sustentável, a portaria prejudica tanto o desenvolvimento da ciência quanto a conservação do meio ambiente no Brasil. "Um dos pontos principais da pesquisa é justamente você ter liberdade para transmitir os resultados que foram encontrados usando o método científico. Um mecanismo direcionado para uma linha de pensamento, que vai funcionar com aprovação ou reprovação do conteúdo de um artigo científico, é um mecanismo de censura, é um perigo para a liberdade de pesquisa científica", afirma.

Cientistas veem controle em outros órgãos

O temor dos pesquisadores ocorre não somente pela portaria em si, mas pelo contexto que vem se desenrolando nos últimos anos. Em julho de 2019, por exemplo, após o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgar dados que mostravam a aceleração do desmatamento na Amazônia, o presidente Jair Bolsonaro falou que os números eram "mentirosos" e que o diretor do Inpe estaria "a serviço de alguma ONG". A ofensiva culminou na exoneração do então diretor do instituto, Ricardo Galvão.  

Mais recentemente, em 5 de março, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou internamente um ofício que determina que pesquisas e estudos só podem ser divulgados após "aprovação definitiva". Os servidores do Ipea também só poderiam falar com a imprensa após aprovação do órgão. Anexo ao ofício, foi encaminhado, por e-mail dirigido individualmente a cada funcionário, o Manual de Conduta do Agente Público, que informa que a inobservância da norma poderia caracterizar descumprimento de dever ético e, eventualmente, infração disciplinar. Em nota pública, os servidores expressaram preocupação com cerceamento à liberdade. 

"Infelizmente [a portaria do ICMBio] não surpreende, né? Não é surpreendente, a gente já vive, como todos sabem, em um regime democraticamente autoritário", diz o pesquisador Tiago Reis, que estuda ações de combate ao desmatamento na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. "Do ponto de vista científico, [a portaria] é um absurdo. O diretor de um instituto de conservação, que zela pelas áreas protegidas de um país, mais do que ninguém deveria ser justamente o interessado em ouvir o contraditório, em acolher a publicação científica que desagradasse, que contrariasse." 

Coordenadores de centros questionaram regra

Segundo servidores do ICMBio e do MMA entrevistados, a construção do código de ética que culminou na portaria não foi participativa. Chegou a haver entre os funcionários um movimento para que não assinassem o documento, mas, segundo eles, houve pressão no sentido contrário. 

"Como a própria discussão da fusão do Ibama [Instituto Brasileiro de Meio Ambiente] com o ICMBio, que não tem quase participação dos servidores, a gente tem um conjunto de decisões que começam a excluir servidores, feitas em gabinete. É uma prática que vem se estendendo, causa uma preocupação porque temos o histórico do Inpe, essa disputa de narrativas em cima dos dados", diz uma funcionária do MMA. 

"Esses instrumentos foram totalmente feitos sem consultas às áreas técnicas. A gente tem o entendimento de que o objetivo central é sim censurar ideias, porque se uma construção é feita totalmente à revelia da área técnica, parece que a intenção não é a excelência técnica, mas estabelecer o controle do que é dito", afirma pesquisadora do ICMBio. 

Em agosto de 2020, os diretores dos centros de pesquisa do ICMBio chegaram a emitir um documento, enviado à Procuradoria Federal, questionando a necessidade de autorização de divulgação das pesquisas, uma vez  que o próprio órgão já contava com uma série de regras para isso. O texto também questiona, entre outros pontos, quais seriam as diretrizes para os procedimentos e critérios para emissão da autorização. Em resposta, contudo, a Procuradoria considerou procedente a nova norma. 

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