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Cinema & Arte

Soraia Vilela13 de fevereiro de 2009

Os brasileiros Melissa Dullius e Gustavo Jahn falam em entrevista sobre a interseção entre cinema narrativo e experimental em seus filmes e contam por que Berlim é a cidade ideal para desenvolver projetos independentes.

Gustavo Jahn e Melissa DulliusFoto: DW

Deutsche Welle: Vocês estão envolvidos no projeto de um laboratório de cinema em Berlim. Poderiam explicar do que se trata?

Melissa Dullius: O laboratório é uma possibilidade para as pessoas que se interessam pela revelação manual da película, pelo fazer com as próprias mãos. É cada vez mais raro encontrar laboratórios que revelam Super 8 e 16mm, no Brasil já quase não existem. Aqui [em Berlim] é possível, de certa maneira, fazer isso em casa, com certos equipamentos, mas a técnica tem que ser mais divulgada para ser mantida viva. É uma técnica nada complicada, mas que pode desaparecer. Evitar que isso aconteça é o nosso objetivo: somos umas dez pessoas no núcleo principal, que se reúne regularmente e procura fazer isso acontecer, a partir de agora numa sede aberta ao público. E há um grupo maior de pessoas que apoiam a ideia porque acham isso importante.

Para rodar Triangulum, vocês foram para o Cairo, levaram uma câmera de 16mm e acabaram se deixando guiar pelas próprias experiências pessoais. Poderiam descrever esse processo?

Melissa Dullius: O Michel [Michel Balagué, fotógrafo e produtor do filme], o Gustavo e eu planejamos essa viagem para o Cairo já pensando no filme. Filmamos uma cena em Berlim, que chamamos de prólogo, onde os três personagens têm um encontro com uma mulher. E isso vai determinar a viagem de uma certa maneira. Essa é a pista inicial para o filme.

Fomos para o Cairo para ficar seis semanas. Nos primeiros dez dias, escrevemos o roteiro, isto é, andamos durante o dia pela cidade e à noite formatamos tudo num roteiro, que tinha até uma forma tradicional. Discutimos tudo e começamos a filmar. O roteiro foi guiado pelas experiências, mas recriado. Não é uma coisa biográfica ou documental, mas uma recriação, onde retrabalhamos sensações, colocando pessoas reais que achamos interessantes dentro do filme.

E por que o Cairo como cenário?

Melissa Dullius: Essa é uma pergunta que até aparece no filme. Os próprios personagens, no começo, não sabem por que estão lá e querem descobrir. Um de nós tinha um conhecido lá e já tinha estado na cidade, mas a escolha foi mesmo casual. Chegando lá fez sentido, mas não sabíamos muito bem por que fomos até lá.

A tensão não só entre as pessoas, mas também entre as culturas, é uma das temáticas do filme. De que forma isso se dá?

Melissa Dullius: Era um mundo onde tínhamos contato através da língua só com as pessoas que falavam inglês ou através do contato visual. Isso já é uma tensão, já cria um filtro entre nós e a outra cultura. Mas, mesmo assim, era muito fácil para nós, brasileiros, interessados naquela cultura, interargir com as pessoas. Era tenso, difícil e um pouco confuso, mas isso alimentou o filme.

Cena de 'Triangulum', exibido no Festival de BerlimFoto: DW

É possível então dizer que houve uma tensão, mas não no sentido negativo do termo?

Melissa Dullius: A tensão sempre pode levar a um pouco de paranoia e desentendimento. Não era totalmente positivo, mas isso alimentava a sensação do filme. A gente procurou traduzir essa atmosfera de não saber exatamente o que está acontecendo, de não saber para onde olhar, não entender o que está e o que não está ali. Isso não é negativo nem positivo, mas é tenso. E está no filme.

Vocês poderiam falar um pouco da trajetória de vocês, de trabalhos anteriores, inclusive com alguns coletivos quando ainda trabalhavam no Brasil?

Gustavo Jahn: A gente se encontrou numa faculdade de Comunicação. Todo mundo se interessava por cinema e queria fazer filmes. Começamos a trabalhar nesse grupo, chamado Sendero Filmes, em Porto Alegre, mas depois as pessoas se dispersaram: alguns foram trabalhar com artes plásticas, outros continuaram no cinema. Parte desse primeiro grupo formou outro, o Avalanche, também em Porto Alegre, que trabalhava com cinema, música, artes visuais e continua existindo até hoje. Com esse grupo fizemos o filme Éternau.

Foi quando viemos para Berlim e acabamos encontrando pessoas que estão tentando trilhar seu próprio caminho sem estar dentro de uma estrutura oficial. As pessoas que encontramos em Berlim tinham projetos semelhantes: essa história de revelar o 16mm em casa, criar uma estrutura, e a partir daí gerar uma discussão, fazer filmes e criar.

A escolha de Berlim foi casual?

Gustavo Jahn: A gente olhou no mapa e resolveu. A Melissa fala alemão e tinha vindo para o Talent Campus [seção do Festival de Berlim dedicada a profissionais jovens] antes, tinha uma ligação com a cidade, mas viemos para cá conhecendo só duas pessoas que trabalhavam com cinema, não mais que isso.

A gente queria se colocar numa posição de ter que começar de novo. Isso está um pouco dentro do Triangulum, que se inicia com a frase: "Recomeçar, mil vezes recomeçar". Era um pouco também essa a idéia. A gente achou que Berlim era o lugar, porque a cidade abre vários caminhos para você fazer o que está a fim. Não tem um caminho oficial específico, a ser seguido passo a passo. A gente tinha a idéia de que Berlim seria assim e vimos que é assim mesmo. É uma situação especial de uma cidade que permite a você fazer as coisas do jeito que você quer.

Vocês descrevem o trabalho de vocês como sendo resultante de influências tanto do Cinema Marginal brasileiro quanto de Glauber Rocha. Poderiam falar um pouco sobre essas influências?

Gustavo Jahn: Os filmes do Glauber Rocha, do [Rogério] Sganzerla e do Carlos Alberto Prates Correia foram nossa escola, de certa forma. Algumas cenas específicas no nosso trabalho me lembram um certo tipo de linguagem usada por eles. Um exemplo específico é o uso do diálogo: as frases não são prontas, no sentido de que tenham um significado em si. Cada frase está fechada em si mesma. É um pouco artificial quando se vê, não é um diálogo natural entre duas pessoas, mas é mais poético. O Sganzerla, por exemplo, sempre tratou o diálogo dessa forma.

São frases prontas, no sentido de ser quase um adágio, mas também um diálogo de significados, embora não seja normal e realista. Isso é uma coisa que a gente usa e que eu sei de onde vem, embora não sejam citações, que é uma ideia à qual não recorremos.

A atitude em relação ao cinema também é semelhante. A gente lida muito com reações de espectadores que dizem "ah, mas não dá para entender". O Sganzerla, o Prates Correia e outros tinham essa atitude em relação ao cinema, de achar que cinema é imagem e som e um caminho que você propõe para as pessoas, mas não uma coisa pronta que você entende de imediato.

Melissa Dullius, Michel Balagué e Gustavo Jahn nas ruas do CairoFoto: DW

Nisso, nossos filmes se parecem com os deles, porque têm peças de uma história, mas também lacunas. A gente aceita essas lacunas, porque lidamos com a vida: não dá para entender tudo, não é tudo sempre deste ou daquele jeito. E também há semelhanças na forma espontânea como a gente produz. Lidamos muito com o que temos. Até um certo ponto a gente vai atrás e tenta criar uma situação, mas partimos também muito do que está acontecendo na hora, do imediatismo e da espontaneidade.

O filme de vocês faz parte do Fórum Expanded, que é uma mostra do Festival de Berlim mais voltada para a videoarte, que é, em princípio, uma vertente das artes visuais que se afasta do improviso. Não há aí um paradoxo nessa interseção entre Cinema Marginal e videoarte?

Gustavo Jahn: É paradoxal, mas se houvesse uma divisão, a gente se sentiria mais "do cinema". É a nossa escola, são as pessoas com as quais a gente se relaciona, mesmo que mais de uma vez tenha acontecido de os nossos filmes serem exibidos num contexto de arte, ou seja, de museus ou galerias. Em Berlim, o Triangulum está sendo exibido no Forum Expanded, ao lado de outros filmes que fazem parte da tradição da videoarte, que usam o suporte, mas com uma outra linguagem, sem lidar com o plano.

Os filmes que a gente faz são muito pouco narrativos para o cinema narrativo e narrativos demais para o cinema experimental ou videoarte. A gente está no meio do caminho, às vezes de um lado e às vezes de outro. Eu, pessoalmente, gosto de exibir os filmes que faço. A gente lida com o plano, que é uma coisa cinematográfica, com o enquadramento, espaço, tempo.

Embora nosso trabalho venha sendo incluído num contexto de artes plásticas, a gente continua acreditando que faz cinema, só que com lacunas. É ficção, é narrativo, você identifica personagens, mas ao mesmo tempo faltam coisas. Estamos tentando construir uma linguagem própria e ela é cinematográfica, não há dúvida. Não faço meus filmes pensando em mostrar num espaço de galeria, mas sim nas salas de cinema.

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